quarta-feira, 22 de dezembro de 2021


22 DE DEZEMBRO DE 2021
MÁRIO CORSO

Luto com juros abusivos

Um amigo contou que fez um testamento vital. Indaguei os motivos. Falou do sofrimento de ver seu pai vegetando. Emenda com o relato da sogra. Uma senhora, até pouco tempo atrás ativa e conectada, que agora não reconhece ninguém da família. Tampouco ela sabe onde está, mesmo em sua casa de décadas. Relata a angústia dos familiares que assistem a essas mortes em vida. O testamento vital seria uma tentativa de não passar por isso e, especialmente, evitar que seus filhos passem por isso.

No documento pede-se que certas práticas que revertem a morte não sejam aplicadas, quando já não estivermos em condições de tomar decisões. É útil para que não se evite a morte quando a verdadeira vida - no sentido de qualquer consciência de si - já se foi.

Lembro dos meus pacientes. Alguns com a vida resolvida buscam ajuda para lidar com a demência dos pais. Já nos acostumamos a enfrentar o declínio deles. Envelhecer não é fácil, mas é bem melhor do que a outra opção. Porém, a demência traz um sofrimento de outra ordem. Os cuidadores assistem ao desligamento gradual do sujeito, enquanto resta um corpo que reage com estereotipias e instintos. Testemunham uma morte lenta, a vida que se esvai antes do fim. É um martírio constante para quem está ao lado.

Colocam-se questões impossíveis: até quando posso dizer que o meu progenitor está ali? O que é "isso" em que ele se transformou? Quando posso dizer que perdi meus pais? Mesmo sem resposta, instala-se um luto em prestações com juros abusivos.

Nesta mesma semana, uma paciente contou uma desventura. Receosa com uma ferida que não cicatriza na mão de sua mãe, marcou o dermatologista e a levou. Com o estacionamento lotado, parou longe. Era um dia de Porto Alegre quarenta graus. Sua mãe caminha com dificuldade. Foi uma epopeia até chegarem ao destino. Mas era necessária, o médico tampouco gostou do que viu e optou por retirar. Para evitar o desgaste, já fez na hora.

Chegando em casa, acomodou a mãe, que, esgotada, adormeceu. Ela se consumia em culpa por ter feito sua mãe atravessar o Saara. Uma hora depois, encontra a mãe no banheiro à procura de um curativo. A senhora mostra para a filha o corte em sua mão e diz: não sei onde me arranhei. Indagada, não se recordava da consulta nem do procedimento. Não foi a primeira falha grave de memória da mãe. Agora, pela progressão, a filha sente que a memória dela só vai ladeira abaixo.

Como continuar filhos quando a consciência dos pais vai pelo ralo da memória? Dos corpos esvaziados de nossos pais, restamos como cuidadores. O problema é que essa sobrevivência apenas física tende a apagar a vitalidade dos afetos. O testamento vital do meu amigo é uma tentativa de que nosso corpo não sobreviva sem nós, a ponto de apagar as boas memórias que desejamos deixar.

MÁRIO CORSO

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