sábado, 11 de dezembro de 2021


11 DE DEZEMBRO DE 2021
FILOSOFIA

A ODISSEIA DE BOTELHO

Em novo livro, escritor e tradutor José Francisco Botelho passeia com propriedade por "uma breve história do pensamento ocidental"

CLÓVIS DE BARROS FILHO

Filósofo, jornalista, professor na USP

Imagine-se acordando de repente em uma casa desconhecida: a mobília tem ângulos estranhos e funções misteriosas; as paredes estão cobertas por cores incongruentes; há enigmáticos mecanismos espalhados pelos cômodos, funcionando de forma deliberada, como se alguém os houvesse programado especificamente para causar perplexidade e indagação. Ao acordar, você não sabe de onde veio, tampouco imagina o que está fazendo ali. O propósito e o funcionamento de todas as coisas lhe parecem, à primeira vista, impenetráveis; ao mesmo tempo, parece haver um sentido em todos esses estranhos objetos que o cercam.

É assim que José Francisco Botelho inicia o seu livro Odisseia da Filosofia: uma Breve História do Pensamento Ocidental. Em determinado momento, a humanidade começou a se indagar sobre o sentido desse mundo que, se por um lado parecia obedecer a uma lógica secreta, por outro não deixava de ser inexplicável. Essa reação foi o que Aristóteles chamou de "espanto" e "assombro", que posteriormente fizeram nascer os mitos como tentativa de explicar a incoerente coerência humana. E é esse sentimento de assombro diante do real, e diante do próprio ato de pensar, que Botelho captura com fôlego literário em sua obra. Como prenuncia a metáfora doméstica daquele primeiro parágrafo, a Odisseia de Botelho é um livro que explora as estranhezas essenciais na história das ideias, conferindo um ar de novidade e frescor a conceitos que surgiram há séculos ou milênios.

Com originalidade, o autor costura as histórias política e do pensamento, discutindo as diferentes respostas que, ao longo dos séculos, os pensadores elaboraram para certas perguntas: Em que consiste o mundo? O que fazemos nele? Quais as implicações do ato de pensar sobre o real? Será que podemos conhecer o universo que nos cerca?

Dos pré-socráticos ao século 21, Botelho conduz o leitor com seu estilo claro, preciso e inventivo, enredando-nos no prazer da leitura por meio de uma narrativa entretecida com a excelência de quem conhece seu ofício. Assim, Botelho é capaz de explicar de maneira deliciosa e clara conceitos muito complexos, às vezes lhes conferindo a forma de uma narrativa exemplar. Vejam, por exemplo, como ele delineia o argumento contra a linguagem privada, de Wittgenstein:

Digamos que eu acorde em certa manhã chuvosa, caminhe até a padaria e comente com o padeiro: "Estou com saudade do sol". Ele responde: "Estou com saudade de minha esposa". Quando usamos a palavra "saudade", estamos falando da mesma coisa? Não posso pegar minha saudade e mostrá-la ao interlocutor. Talvez nossas saudades se refiram a coisas totalmente diferentes: em que sentido minha irritação com a chuva é semelhante à solidão conjugal do padeiro?

No entanto, para nós dois, a conversa fez todo sentido - porque manejamos a peça verbal segundo as regras partilhadas do tabuleiro. Se não houvesse regras públicas nesse jogo, não haveria linguagem. Digamos que eu resolva inventar um nome diferente para aquela melancolia irritadiça que me assalta em manhãs de chuva; digamos que eu chamasse essa sensação de namük. Anoto a palavra em um caderninho - meu dicionário particular. No amanhecer seguinte, volta a chover. 

Saio à rua; mas, hoje, a sensação está um pouco diferente: a melancolia me parece menos irritada, puxando para a resignação, talvez até com pitadas de doce desalento... Será que posso chamá-la de namük, ou terei de inventar outro nome? Gnök, quem sabe? Mas talvez eu não recorde com exatidão o sentimento da manhã anterior; nesse caso, como posso compará-lo à sensação que tive hoje? E, em todo caso, imaginemos o que aconteceria se eu dissesse ao padeiro: "Creio que estou com namük, mas talvez esteja com gnök. Também é possível que gnök e namük sejam a mesma coisa". Pensando bem, é mais fácil ficar com "saudades do sol".

Confesso que, ao ler o livro de Botelho, fui tomado por um embasbacamento inicial, semelhante ao que sentiram o seres humanos quando passaram a refletir sobre o mundo e sobre si mesmos, lá na aurora da filosofia. A proeza dessa Odisseia só é possível a um escritor maduro e eclético como Botelho. Autor de dois memoráveis livros de contos (A Árvore que Falava Aramaico e Cavalos de Cronos, publicados pela editora Zouk) e um volume de poemas (E Tu Serás um Ermo Novamente; editora Patuá), Botelho também é tradutor premiado, reconhecido por suas versões de Shakespeare e Chaucer. E é sua experimentada verve literária que faz de A Odisseia da Filosofia um genuíno vira-páginas, que se lê com prazer - e assombro - da primeira à última linha.

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