quinta-feira, 16 de dezembro de 2021


16 DE DEZEMBRO DE 2021
O PRAZER DAS PALAVRAS

Olhos de lince

Entre os milhares de palavras que herdamos dos gregos e dos romanos, caro leitor, vamos encontrar, inevitavelmente, referências a personagens e criaturas que povoavam a mitologia clássica. Muitas delas são facilmente reconhecíveis a olho nu, sem necessidade de pesquisa. A associação de Afrodite, a deusa grega da beleza e do amor físico, com os afrodisíacos é instantânea - assim também como a de seu filho Eros (para ficarmos dentro da mesma família) com erótico e erotismo. Não precisamos muito esforço para enxergar o parentesco do museu e da própria música com as Musas, as graciosas divindades que presidiam a arte e a cultura. Outras, no entanto, não são tão evidentes assim, como vamos ver.

1) Olhos de lince - Como podemos ver habitualmente no Animal Planet, o lince, no fundo, não passa de um grande e belo gatão selvagem, dotado, mutatis mutandis, dos mesmos equipamentos e dos mesmos instintos que o gatinho de nossa casa. Não há nada de especial nos olhos dele que justifique toda a propaganda feita a seu respeito, cristalizada numa expressão que vem sendo usada a séculos: ele tem olhos de lince ("indivíduo que enxerga muito bem", explica o dicionário Houaiss). Muito mais lógica é a versão olhos de águia, já que a visão das aves de rapina é superior à de qualquer outro animal.

Como no caso do atlas, aqui também ocorreu um pequeno deslizamento de terra que encobriu sua verdadeira origem. Estamos falando de um personagem mitológico chamado Linceu, piloto do navio dos Argonautas, heróis que foram à Cólquida em busca do Velocino de Ouro sob o comando de Jasão. Este sim, diz a lenda, tinha uma visão extraordinária, em nada inferior à visão de raio X do Super- Homem: podia ver no escuro, podia ver a quilômetros de distância, podia ver através das paredes, das árvores, das nuvens, podia ver até o que estava enterrado no solo. Não é caso, no entanto, de corrigir o uso consagrado. O nome do herói e o nome do felino são muito semelhantes, tanto no Latim quanto no Grego, e eles se entrelaçaram de tal forma que, assim como certos irmãos xifópagos, a tentativa de separá-los seria fatal.

2) Sirene

Não se pode confundir a sereia grega com a sereia celta. Nós usamos a mesma palavra para ambas, mas o Inglês chama a primeira de siren e a segunda de mermaid. Esta última é representada comumente como uma atraente mulher com cauda de peixe - muitas vezes perigosa e sedutora, figura clássica das mulheres que vivem no fundo d?água, como a nossa Iara do folclore indígena -, outras vezes como uma encantadora adolescente, ingênua e sonhadora, como a Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, popularizada pela Disney no seu desenho Little Mermaid.

Já as sereias gregas eram muito diferentes, como bem sabia Ulisses. Eram criaturas monstruosas, com cabeça de gente e corpo de pássaro, que viviam, sempre à espreita, numa pequena ilha rochosa do meio do Mediterrâneo. Segundo o mito, os navegantes ficavam enfeitiçados por seu canto e se aproximavam do rochedo, sendo implacavelmente devorados. Por analogia com o som que emitiam, o Português usa a variante sirene para designar aquele som agudo e estridente que as fábricas, os navios e os veículos das autoridades utilizam para avisar sua aproximação. O Inglês e o Francês não fazem esta valiosa diferenciação e usam a mesma forma tanto para a entidade mitológica quanto para o som das viaturas (siren e sirène, respectivamente). Nessa armadilha caiu Lúcia Miguel Pereira, ao traduzir O Tempo Redescoberto, o último volume do Em Busca do Tempo Perdido. Por exemplo, numa passagem Proust descreve o bailado aéreo sobre Paris, durante a 1ª Guerra, com esquadrilhas de aviões patrulhando o céu noturno contra a ameaça dos zepelins alemães: "a cidade assemelhava-se a uma massa informe e negra que de repente assomasse das profundezas da noite para a luz e para o céu onde, um a um, os aviadores se elevavam ao apelo desesperado das sereias"... Epa!

Aproveito para lembrar aos caríssimos leitores que nosso podcast sobre Mitologia continua de vento em popa, aproximando-se do seu quadragésimo episódio. Para quem ainda não ouviu, basta acessar Noites Gregas pelo Spotfy ou similares, ou simplesmente entrar no site www.noitesgregas.com.br, onde narro todas as fantásticas narrativas que a imaginação grega criou.

CLÁUDIO MORENO

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