quinta-feira, 16 de dezembro de 2021


16 DE DEZEMBRO DE 2021
CARPINEJAR

Cumplicidade entre irmãos

O que os pais mais desejam na vida é que os filhos se deem bem. Para que tenham a tranquilidade de que um vai ajudar o outro, e ninguém passará por dificuldades, na hipótese de um dia não estarem mais aqui. É a herança que as crias podem deixar aos seus provedores: paz e confiança.

Quando irmãos brigam entre si, estão magoando também os pais, que se tornam joguetes das ofensas, cabos de guerra num lar dividido. Não são capazes de escolher um lado (reprise do julgamento bíblico de Salomão) e são estigmatizados pela omissão. Desagradam a ambas as partes em conflito.

A minha irmã Carla vive me devolvendo a infância, assim nunca me esqueço do quanto somos inseparáveis. Quando pequenos, no revezamento de buscar os pães no armazém do Seu Alencar, às 18h em ponto, horário de retirar as bandejas do forno, articulávamos uma molecagem. Quem era o responsável pela tarefa abusava da pressa do apetite: voltava de lá retirando o miolo quente de dentro dos cacetinhos durante o caminho. Eu e Carla disputávamos a honraria da convocação. Ninguém decifrava o motivo de nossa presteza, do nosso voluntariado de caminhar até a esquina, só nós mesmos entendíamos.

No momento de pôr o pão na mesa, restava unicamente a casca. Roubávamos todo o interior. Óbvio que fazíamos questão de dividi-lo antes com a faca na cozinha para camuflar os nossos crimes. Eu me recordo do cheirinho da massa úmida fervendo enquanto andava lentamente de volta. Inventava bolinhas para colocar na boca e soprava a superfície com alegria. Meu alpiste, nosso segredo. Ela não me entregava, eu não a entregava. Fingíamos surpresa e espanto com os defeitos constantes da padaria. A família precisava compensar a magreza do alimento esbanjando geleia, manteiga, salame. O pão chegava raquítico do pacote de papel.

Fui tomar um café da tarde com Carla nesta semana. Ela me convidou para uma tábua de frios e vinho. Armou um banquete. Eu me senti no Festival de Queijos de Carlos Barbosa. Não podia crer que não vinha mais nenhuma visita. Ao me servir, estranhei o pão aberto, escancarado. Ela tinha subtraído o miolo. Apenas piscou, e entendi o recado, a lembrança no fundo do tempo, a saudade folgazã. Gargalhamos juntos, embriagados pela cumplicidade. A alma da Carla é meu recheio. Os pais vão se orgulhar da gente.

CARPINEJAR

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