18 DE DEZEMBRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL
O PASSEIO DE BUDA
Sidarta Gautama nasceu em data incerta, entre os séculos VI e V a.C., na cidade de Lumbini, reino hindu de Shakya, hoje no Nepal. Sua biografia carece de documentação e só foi narrada após alguns séculos, já mesclada com lendas e episódios folclóricos. Seu pai, Suddhodana, seria um rei ou alto aristocrata, casado com Maha Maya; quando Sidarta nasceu, oito sábios o examinaram e indicaram que seria ou grande rei ou grande Buda, termo hindu para religioso iluminado. Para evitar que se tornasse monge, o rei tratou, então, de confiná-lo no palácio, envelopado em comodidades.
Aos 29 anos, porém, o príncipe conseguiu sair, conduzido pelo amigo cocheiro Chandaka, e teve, no passeio, quatro visões que o espantaram: um homem velho, um doente, um corpo morto e um asceta. Ao saber da dureza da vida, Sidarta abandonou o palácio e a família, com o cocheiro e o cavalo Kanthaka, e partiu para uma senda de mortificação, meditação sob a figueira e, após algum tempo, iluminação (bodhi), quando compreendeu as quatro nobres verdades: 1) a vida é sofrimento (Dhukka); 2) o sofrimento é causado pelo desejo, especialmente o de que o transitório se torne permanente (Samudaya); 3) a dor cessa com a supressão do desejo (Nirodha); 4) para superar o sofrimento, há oito caminhos nobres (Magga) - as virtudes budistas. E se Sidarta vivesse nesta cidade e saísse de sua mansarda para um passeio?
Hoje andamos nas ruas e vemos quadro desolador, de pungente miséria. As cidades brasileiras, há muito marcadas por subúrbios com condições degradantes, ora cobrem-se de uma arquitetura patética, de barracas iglu em canteiros, tendas de trapos e lonas pretas, e já não há mais pontes desocupadas, nem semáforo sem mendigo. Não é preciso um Sidarta para perceber a gravidade desse quadro, sua dor, sua urgência.
Mas pior do que a miséria urbana é a crueldade humana. Caminhando por uma das ruas mais ricas do planeta, a Av. Paulista, o artista Gustavo Nakle viu, na esquina com a Haddock Lobo, a prefeitura recolhendo a casa de lona de um lúmpen desesperado; entre os escombros, via-se uma arvorezinha de Natal, já destruída.
Em Porto Alegre, para poupar príncipes e princesas, a prefeitura, com a Guarda Municipal e o DMLU, destruiu as choupanas de lona das calçadas da Rua Gaspar Martins e levou bens e colchões, espoliando deserdados que clamam por assistência social. Um padre heroico, Lancelotti, parece emergir da saga de Artur para ele mesmo destruir com marreta as pedras agudas que desalmados põem para impedir que pobres sem teto possam ali dormir. Tal como aconteceu na Índia há milênios, hoje essa dor e o cerco da crueldade acendem-nos o desejo de que algo seja feito para pôr-se fim a tanta desumanidade - o despertar ético, samvega moderno.
A solução de Buda, como a de epicúreos e estoicos, foi uma ética individual com escasso efeito social, incapaz de resolver esse tipo de dor na cidade, chaga de nossa civilização. Precisamos mais. Na era digital, teclaremos números que combatam a miséria e façam cessar a torrente de ignorância e ódio que nos assola nesses anos mórbidos.
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