sábado, 25 de dezembro de 2021


25 DE DEZEMBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Duas horas de presente

Ganhei duas horas memoráveis de presente de Natal. Numa noite da semana passada, exausta pelas atividades do dia e pela pressa que caracteriza essa época de festividades, me sentei em frente à tevê e escolhi para assistir, no cardápio da Netflix, ao novo filme do italiano Paolo Sorrentino, A Mão de Deus. Não imaginava que estava abrindo o melhor pacote que poderia ser deixado embaixo da minha árvore.

É o que chamo de timing perfeito. No encerramento de mais um ano tenso e difícil, nos chega esse convite para pisar nas nuvens. Sorrentino, de A Grande Beleza, nos presenteia com outra epifania, um filme que se inicia excêntrico e imprevisível, até que, aos poucos, começa a tocar no divino. É a história de Fabietto, jovem de 17 anos que está prestes a realizar um sonho: ver seu ídolo Maradona jogar no Napoli, o time da sua cidade. Mas a vida lhe reserva ainda outra surpresa, um forte empurrão para que se despeça da sua inocência.

Parece um roteiro como qualquer outro, mas quem está no comando não é qualquer diretor. Sorrentino dá uma aula sobre seu ofício. Posiciona a câmera de modo a extrair ângulos incomuns e confirma a máxima felliniana de que o cinema não precisa servir para nada, a não ser para nos distrair da realidade. E assim somos arrebatados pelo extremo fascínio de suas imagens e flutuamos em outra dimensão, pra longe da vulgaridade dos julgamentos.

Por duas horas, esquecemos do mundo politicamente correto, das disputas entre o certo e o errado, da obrigatoriedade de tudo ter que fazer sentido. O absurdo vem buscar seu lugar de fala. O racionalismo cede lugar ao sensorial. A fantasia conquista o pódio máximo da realização humana. Nápoles, aquela cidade caótica, suja e barulhenta que costumamos ver em enquadramentos realistas, torna-se uma joia neoclássica, uma metrópole cintilante. Até um engarrafamento no trânsito apresenta-se em majestosa organização.

Sorrentino eleva o status das caricaturas, abençoa as alegorias e impede nosso abatimento - é proibido ficar entediado. Não há uma única tomada que não seja gloriosa, mesmo as breves. É noite. Numa rodovia à beira-mar, um carro com urgência para chegar em um hospital vai ultrapassando os outros, num balé de faróis, sombras e movimento ritmado. E uma cena qualquer se torna "a" cena.

Que filme bem-vindo depois de uma pandemia que colocou a todos de joelhos diante da crueza dos fatos e da vida. É como se a mão de Deus nos tirasse do meio dessa bagunça e nos jogasse em outro plano. Uma experiência cinematográfica formidável. Se antes eu era admiradora, me tornei devota de Sorrentino, e devoção me parece uma palavra adequada ao final de mais um dezembro.

MARTHA MEDEIROS

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