quarta-feira, 9 de setembro de 2015



09 de setembro de 2015 | N° 18289 
MARTHA MEDEIROS


Que horas ela volta? 

Em junho passado, o ator e colunista da Folha de S. Paulo Gregório Duvivier publicou um texto chamado “Nos países em que você lava a própria privada, ninguém mata por uma bicicleta”. 
Muitos elogiaram, compartilharam, mas uma coluna de jornal não é suficiente para mudar a cabeça de um país. Se o texto dele foi um importante tijolinho, no cinema temos um tijolaço que também pode ajudar a construir uma nova mentalidade nacional. Trata-se do excelente Que Horas ela Volta?, da diretora Ana Muylaert, com a extraordinária Regina Casé.


O filme conta a história de uma empregada nordestina que trabalha e mora na casa de uma família do Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Ela praticamente criou o filho dos patrões, enquanto que não vê a própria filha há anos, desde que a deixou em sua terra para tentar a vida no Sudeste. Até que um dia a jovem chega a São Paulo para prestar vestibular e viver com a mãe.


Nem um pouco submissa, ciente de seus direitos de cidadã, a garota revoluciona o cotidiano familiar regido pelo tradicional “cada um que conheça o seu lugar”. Ela realmente conhece o dela, só que não é o mesmo de sua mãe, que está habituada a diminuir-se e resignar-se, e que se horroriza com a “insolência” da filha. 

 Em duas horas de projeção, está tudo ali: a invisibilidade do proletariado (a empregada serve os canapés numa festa em que nenhum convidado olha para seu rosto), a gentileza que procura atenuar a culpa pela diferença de classes (a patroa compra um colchão melhorzinho para a garota que dormirá no quarto da mãe, assegurando assim que ela não ultrapassará as fronteiras da ala íntima da casa), tudo embalado na boa intenção que mascara a perversidade da desigualdade. Segundo a própria diretora, o filme trata sobre “as regras sociais invisíveis que nos regem, muitas vezes, sem nossa própria consciência”.

Essas regras invisíveis são desvendadas no filme com tanta veracidade, tanta familiaridade, que se tornam perturbadoras. A certa altura, a personagem de Regina Casé tenta explicar para a filha que ela não pode aceitar os agrados dos patrões, pois eles oferecem sorvete e convidam para sentar na sala apenas por educação. “Eles têm certeza de que diremos não”. Até que a classe emergente começa a dizer sim, a reconhecer o verdadeiro lugar a que pertence, e a pirâmide desestrutura-se.

A que Horas ela Volta? sintetiza o momento atual do Brasil, evidencia as razões dessa guerra de nervos partidária, expõe o estresse gerado quando uma teoria demagógica se aproxima da prática, revela o indisfarçado incômodo de assistir à ascensão intelectual e econômica de quem, até então, existia apenas para nos servir. Enfim, escancara o susto gerado pela perspectiva de que todos terão que lavar sua própria privada um dia.

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