14 de setembro de 2015 | N° 18294
DAVID COIMBRA
O homem sábio
Os arqueólogos estão espantados com o descobrimento desse novo homem antigo, o Homo naledi. Tratava-se de tipo humano pequeno, um hominídeo, na verdade, menor do que o Nenê, aquele ponta-esquerda do Grêmio com quem o Foguinho tinha implicância exatamente por ele ser baixinho. Um dia o Foguinho o perfilou ao lado do Chico Spina, que era uma cabeça mais alto, e perguntou para os outros jogadores:
– Qual deles devo escalar?
Preconceito do Foguinho. O naledi, 2 milhões de anos mais velho do que nós, sapiens, provavelmente daria bom ponta-esquerda. Ele parecia esperto e certamente era ágil e flexível: enterrava seus mortos em lugares estreitíssimos nas cavernas africanas. Só os menores cientistas, os do tamanho do Nenê, conseguiram se esgueirar para retirar os ossos dos naledi de lá. Vi as cenas das remoções, cenas angustiantes, claustrofóbicas, os cientistas rastejando feito lagartos no chão da caverna, enfiando-se em frestas pouco maiores do que a abertura de uma gaveta. Eu jamais conseguiria.
Muitos acreditam que o naledi é um de nossos ancestrais. Duvido. Ele devia ser uma espécie paralela. Nós, do gênero Homo, somos como o cachorro. Pense no cachorro: tanto aquelas ratazanas peludas, que os donos carregam no antebraço, quanto o nobre pastor alemão são descendentes do lobo. Como um fidalgo e elegante lobo se transformou em um lhasa apso é algo que só pode ser atribuído ao senso de humor da evolução.
Mas não é isso que interessa. O que interessa é que um, esse sim, lídimo parente do lobo, o pastor alemão, mesmo que se sinta atraído por uma lhasa apsa, não poderá se relacionar com ela. Esse é um amor impossível. Não socialmente impossível, não moralmente impossível: fisicamente impossível. O pastor alemão decerto mataria a lhasa apsa na noite da lua de mel, no momento do coito. Seria uma morte de amor, sim, mas não seria bela.
São inúmeros os tipos de cachorro no mundo. Tantos, que não parecem da mesma espécie. Assim imagino o gênero humano. Havia de tudo, antes de o Homo sapiens dominar o mundo e inventar a Civilização. Havia os pequenos e espertos, como o naledi. Havia os quase macacos, como o australopithecus. Havia os poderosos, bem semelhantes ao sapiens, como o neanderthal. Havia dezenas, talvez centenas, quiçá milhares de humanos diferentes.
Acabamos com todos. Nós os extinguimos. Solertemente, ardilosamente, arrastamos todos para as sombras do Vale da Morte. Nossa espécie é exclusivista. Quer tudo para ela, só admite os iguais e está sempre ambicionando mais espaço.
Os cientistas não têm certeza disso? Você duvida disso? Olhe para alguns exemplares da nossa espécie. Olhe para aquela cinegrafista húngara que derrubou um assustado pai sírio que corria com seu filho pequeno no colo. Olhe para outros bem próximos de nós: os sapiens que colocaram fogo num senegalês que dormia na rua, em Santa Maria.
Esses sapiens, que por falta de sorte nasceram na Síria e no Senegal, eram indivíduos sem proteção do bando. Ambos não passavam de animais desamparados. O sírio tentava salvar seu filhote da crueldade de sapiens ferozes, que assam outros sapiens vivos em fogueiras. Ele estava sendo perseguido por policiais sapiens e foi uma sapiens que o chutou traiçoeiramente.
Já o sapiens senegalês tentava apenas descansar. Ele dormia na rua porque havia perdido o horário de chegada ao abrigo. Todos, o senegalês, os sírios, a húngara, os policiais, os terroristas do Estado Islâmico, os gaúchos que queimam mendigos, todos são da mesma espécie. E estão uns contra os outros. Não é um sapiens contra um naledi. É um sapiens contra um sapiens.
Um sapiens protege seu filhote. Um sapiens dorme sobre seu colchão. Outros sapiens os odeiam porque eles vieram de outras partes do planeta.
Nós, sapiens, odiamos o que é diferente de nós. Por que não destruiríamos sem piedade tipos humanos de outras espécies? Lobos não devoram lobos. Mas o sapiens... Bicho ruim, esse sapiens.
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