quinta-feira, 24 de setembro de 2015



24 de setembro de 2015 | N° 18304 
L. F. VERISSIMO

Os mil anos


No ano de 585 antes de Cristo, Tales, da cidade de Mileto, uma colônia grega na atual Turquia, predisse que haveria um eclipse do sol – e acertou. Duzentos anos depois, Aristóteles diria que naquele momento nasciam a ciência e a filosofia gregas. Tales chegara a sua previsão não por poderes mágicos, mas pela observação do movimento dos astros, e o que ela revelava era que havia uma ordem até então insuspeitada no cosmo. Os egípcios já haviam feito um calendário baseado nas fases da Lua mais de 2 mil anos antes de Tales. A novidade da descoberta grega era a de dar o nome de ciência à curiosidade desenfreada e a especulações sobre a origem e o futuro do mundo na ordem cósmica recém revelada. 

Contemporâneos de Tales, como Anaximander e Anaximandes, tinham, cada um, sua teoria a respeito. A teoria do próprio Tales era de que a origem de tudo era uma única substância, a água. Não estava muito longe do que se sabe hoje, que a vida na Terra começou nos oceanos. De um jeito ou de outro, o eclipse previsto inaugurou uma nova maneira de pensar, baseada na observação e na lógica. E influenciou o debate sobre a convivência humana. Afinal, se a organização do universo era previsível, a organização da “polis” também poderia ser, se conduzida racionalmente.

A próxima observação astronômica consequente grega de que se tem notícia é a do filósofo ateniense Proclus no anno Domini 475 – quase mil anos depois de Tales de Mileto. Não sei o que Proclus descobriu ou deduziu dos seus astros. O importante não é Proclus, são os mil anos. O que aconteceu com o que Tales parecia estar inaugurando? Aconteceu que o irracional derrotou o racional. 

Os mil anos entre Tales e Proclus incluíram uma recaída grega na superstição e no misticismo e num embrutecimento da vida civil, muitas vezes oculto pela exaltação feita por outros filósofos das supostas virtudes democráticas de uma sociedade escravocrata em que as mulheres não tinham vez. Incluíram o começo do cristianismo e o crescimento do seu poder sobre vidas e mentes. E incluíram o começo da longa noite medieval, da qual o mundo só acordou, meio zonzo, com a publicação, em 1543, do De Revolutionibus, do Copérnico – outros mil anos depois de Proclus.

Às vezes, dá para pensar que chegamos perto do racional exemplificado por Tales e seus contemporâneos – afinal, conseguimos evitar a guerra nuclear, uma cura para o câncer é iminente e todo dia aparece um sabor novo de picolé – mas às vezes parece que estamos escorregando para mais mil anos de obscurantismo e estupidez. Né não?

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