quinta-feira, 10 de setembro de 2015



10 de setembro de 2015 | N° 18290
 DAVID COIMBRA

Quando chega setembro


Dois personagens da ficção são responsáveis pela construção da imagem do gaúcho típico que se consagrou no Brasil, o gaudério de bigode e bombacha, franco e risonho, meio tosco e meio emotivo. São personagens criados pelas cabeças abençoadas de dois homens da mesma família: a dos Verissimo. O pai, Erico, gerou o Capitão Rodrigo; o filho, Luis Fernando, gerou o Analista de Bagé.

As obras de ambos são clássicos da literatura brasileira, cada qual no seu gênero. O Tempo e o Vento, trilogia em que desponta o Capitão, é o romance de uma vida: poderoso, épico, bíblico. O Analista de Bagé, um pequeno livro de crônicas, é um diamante de estilo, inteligência, velocidade e graça. Entre um e outro, leia os dois.

A brejeirice do Analista de Bagé parece distante do heroísmo do Capitão. Não é. Os dois personagens levam a marca do gaúcho do fundo do campo, aquele que está acostumado a matear devagar e a descansar o olhar na onda da coxilha, o homem simples, trabalhador, austero e, sobretudo, autêntico.

O gaúcho típico é isso: autêntico.

Admiro esse gaúcho. Alguns de meus grandes amigos são exatamente assim, entre eles meu velho parceiro de infância e de chopes tantos, o alegretense, iapiense e ponta-esquerda tosco Amilton Cavalo. Tem também o amantíssimo professor Leonam Borges, mestre de todos os alunos que saíram da Famecos transformados em repórteres. E muitos, muitos outros companheiros.

Esses gaúchos gostam de cultivar a própria lenda, gostam de se sentir um pouco Capitães Rodrigos, um pouco Analistas de Bagé. Parece pretensão. Não é. É para alegrar os dias e preencher o vazio da vida. Aldir Blanc diria que os iguais se reúnem contando mentiras “pra poder suportar”. A vida, de fato, às vezes é para ser sorvida e às vezes há de ser suportada.

Vá a um CTG. Lá você encontrará, justamente, “os iguais”. Não encontrará nababos, nem intelectuais, nem soberbos. Lá só haverá gente que trabalha a partir de segunda pela manhã e que, a partir de sexta à noite, quer beber um pouco e dançar muito, quer trinchar uma carne gorda e dar risada com os amigos. Não é nada muito além disso que os gaudérios fazem no Acampamento Farroupilha durante os setembros de Porto Alegre.

Mas, quando setembro chega, parte do Rio Grande se levanta para fazer com que esses gaúchos se agachem. Não há, entre os gaúchos tradicionalistas, nenhuma orientação discriminatória, nenhuma intenção de preconceito. Eles estão ali para festejar suas tradições, não para lutar contra alguma ideia, comportamento, entidade ou indivíduo. Se num baile de CTG homem não dança com homem e mulher não dança com mulher, essa é uma regra da mesma natureza da que vige nos Filhos de Gandhy, da Bahia, bloco em que mulher não entra. 

Por que ninguém incomoda os Filhos de Gandhy? Por que ninguém incomoda os misteriosos maçons? Por que ninguém se bate contra os interditos de uma mesquita muçulmana? Por que, quando setembro chega, alguns iluminados pretendem “quebrar paradigmas” às custas dos gauchinhos?

Posso responder a essa última pergunta. É porque, entre os gaúchos tradicionalistas, há quase que só trabalhadores de classe média. Eles não têm dinheiro, nem poder. Eles não têm influência, nem influenciam ninguém.

Eu aqui tomo meu mate e até calço alpargatas, eu me emociono com o Vento Negro e com o velho Cenair Maicá, eu aqui, no Norte, estou sempre olhando para o Sul. Mas nunca entrei numa bombacha, nunca frequentei CTG, nunca passei uma noite no Acampamento Farroupilha, nem ando a cavalo. Só acho bonito que esses gaúchos cultivem sua própria identidade, tão bem descrita por essa luzidia família Verissimo. E acho feio, muito feio, que outros se incomodem com quem não está incomodando ninguém.

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