sexta-feira, 25 de setembro de 2015



25 de setembro de 2015 | N° 18305 
DAVID COIMBRA

O carrinho vermelho

Meu plano era ver o outono chegar. Sabia de antemão que ele faria sua entrada no Hemisfério Norte às 4h20min da madrugada de quarta, no mesmo momento em que a primavera derramaria seu charme pelo Brasil. Queria testemunhar o acontecimento. Sempre quis experimentar o exato segundo da mudança de estação.

Assim, pouco antes das 4h20min, iria para a calçada e ficaria esperando, atento, com o nariz farejando o ar, feito um perdigueiro. Imagino um pé de vento de cheiro diferente quebrando a esquina ou, muitíssimo mais apropriado, uma folha amarela despegando-se do galho da árvore e flutuando devagar até o chão, imagino que algum sinal desses seria enviado e eu, inflando o peito, suspiraria:

– Aí está o outono... Mas, maldição!, não consegui acordar.

As trocas de estação por aqui são bem mais marcantes, preciso dizer. Boston se torna pelo menos três cidades completamente diferentes a cada ano, uma branca, outra laranja e a terceira azul e amarela. E, curioso, a transformação se dá em grande velocidade, quase que de um dia para outro. Por isso, na primeira manhã do outono, saí de casa tentando identificar as novidades. Aí, atravessando uma praça, deparei com esse carrinho vermelho.

Conheço a praça e conheço o carrinho. Já o tinha visto, inclusive à noite, debaixo de alguma árvore. O carrinho está sempre por ali. Pertence à praça. Faz parte da paisagem. Mas, desta vez, parei para admirá-lo.

Uma noite, quando meu filho tinha uns três anos, cheguei em casa depois do trabalho e o vi andando num carrinho parecido, em círculos, no pátio. Fiquei algum tempo observando, enternecido. Poucas coisas são mais puras do que um menino pedalando um carrinho no pátio de casa. Ali não há maldade, não há segunda intenção, não há nem reflexão. Um menino e seu carrinho. Só.

O carrinho vermelho da praça, esse especificamente, que parei para ver e fotografei com meu celular, esse carrinho vermelho, com a moça atrás embalando um nenê em um berço, com a grande árvore entre eles, com as rosas ao fundo, essa cena produziu em mim o mesmo enternecimento. A mãe embalando o seu nenê, o frondoso carvalho que se abre para o céu e o carrinho vermelho esperando pelo menino, eles reunidos na primeira manhã do novo outono. 

As maldades do mundo, as ganâncias dos homens, os desencontros da vida perderam sua relevância por alguns segundos, diante do carrinho vermelho. Pode ser banalidade minha, pode ser divagação de meia-estação, decerto que é, mas queria dividir esse pequeno pedaço de paz com você.

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