27 de setembro de 2015 | N° 18307
ANTONIO PRATA
Encontrei Madalena
“Fui passear na roça/Encontrei Madalena/Sentada numa pedra/ comendo farinha seca”. Não foi passeando na roça que encontrei Madalena, mas parado na Doutor Arnaldo, às seis e meia da tarde, ouvindo rádio. A Madalena do rádio me levou a outra, numa sala de aula, em 1985. Não me lembrava dela havia anos, agora quase consigo vê-la na mesa ao lado, na nossa primeira série: o cabelo preto, comprido e cacheado, a pele morena, lábios grossos, uma pequena Sônia Braga de Melissinha, Bic dez cores e estojo coreano.
Falando assim, até parece que eu era apaixonado pela Madalena. Não era. Embora ela me apareça linda, na memória, em 1985 todos a achávamos feia. No colégio que estudávamos, no Morumbi, os modelos de beleza eram a Xuxa e as Paquitas – entre as commodities mais valorizadas na bolsa do primário não estava, como se vê, a melanina. O próprio nome Madalena, penso, destoava das Patrícias, Vanessas e Sofias que admirávamos. Madalena, com seus “as” abertos e consoantes molengas, está para sandália rasteirinha assim como Patrícia, Vanessa e Sofia estão, com suas consoantes pontiagudas, para botas de Paquita.
O trânsito anda, para, a música segue, “entra em beco, sai em beco” e caio numa divagação meio Oliver Sacks: engraçado que a imagem daquela menina, mesmo encaixotada em meus arquivos com o carimbo “FEIA”, não tenha sido deformada pelo juízo de valor. Mudado o meu entorno, mudada minha visão de mundo, a desencaixoto, hoje, e a descubro bonita, por trás do rótulo.
Será? Será mesmo que a imagem não foi deformada? Quem me garante que o presente não tenha embelezado a garota de acordo com meus valores atuais? Pra começo de conversa, a memória foi atiçada pela música. A Madalena de 1985 se misturou à do Gil. Vejo minha colega de infância sentada numa pedra, na primeira serie, de vestido de chita, sorriso brejeiro, como num clipe – reparo que se parece muito com a Camila Pitanga.
Vendo essa Madalena Pitanga, percebo que a melanina está em alta na minha Bovespa pessoal. Será que me livrei de parte dos preconceitos de menino branco, paulista, de colégio particular? Ou a beleza da Madalena é uma espécie de ação – ou reação – afirmativa do meu senso estético, diante dos horrores atuais? O Apartheid praiano, no Rio, as chacinas da PM, em São Paulo, o governo se esfacelando, emporcalhando qualquer bandeira que soe remotamente de esquerda, Que Horas Ela Volta? indo e vindo na minha cabeça: aí a memória encontra a menina morena no meio das Paquitas, Galvão Bueno grita, lá do fundo do meu córtex, “Madalena é Brasiiiil!”, preciso ter esperança no Brasil, um mínimo de otimismo pra continuar saindo da cama, todo dia, pronto, Madalena surge, graciosa, bela, cravo e canela, às seis e meia da tarde, num cruzamento dos meus neurônios.
O trânsito anda, para. “Entra em beco, sai em beco”. O Waze fica recalculando e avisando que estamos cada vez mais longe do nosso destino. Tá tudo travado, tudo zoado. Penso nos comentários que esta crônica irá gerar. Vão me chamar de petista? De machista? De racista? Todo mundo buzina e ninguém ouve nada. A gente devia voltar pra 1985 e recomeçar, do zero. Eu não daria a menor bola pras Patrícias, Vanessas e Sofias, só teria olhos para a Madalena – se é que, algum dia, estudei mesmo com uma Madalena.
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