sábado, 12 de setembro de 2015



13 de setembro de 2015 | N° 18293 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Segregação eficaz

Dois fatos e um fiapo de memória compõem este pequeno texto.

Primeiro: manchete de capa do jornal francês Libération, um dos mais importantes do país, anunciava, uns dias atrás, uma ampla reportagem sobre... como se organizam as turmas do ensino médio na França. A manchete usava a expressão “caixa-preta”, sugerindo que até então o método era fechado aos olhos públicos.

E por que bom motivo um grande jornal de um país com forte opinião pública dedica espaço e tempo ao tema da composição das classes em escola de adolescentes? Porque considera importante, dizia o editorial do dia, que nas classes, o cotidiano mais miúdo, o Estado proporcione convivência entre diferentes níveis de aprendizado (alunos mais e menos rápidos, mais e menos afeitos a esta ou àquela matéria etc.) e entre gente de distintos níveis de renda, diferentes origens culturais e étnicas. 

O jornal, com sua tradicional posição de esquerda reformista, com longa trajetória em defesa das liberdades e da democracia, quer mais convivência. Ou, dizendo ao contrário, quer menos discriminação. Para isso, insistiu em entender os mecanismos usados pelo gestor escolar para, lá no particular, organizar as turmas em cada classe, quem fica com quem, quem não fica com quem.

Segundo fato: poucos dias atrás, ciceroneei duas colegas professoras pela cidade. As duas trabalham em Lublin, Polônia. Uma é brasileira, gaúcha das Missões, e conhecia de Porto Alegre basicamente o Centro; a outra é polonesa e desconhecia solidamente nossa cidade.

Gabei coisas gabáveis – o Beira-Rio (por fora, pareceu a elas mais bonito que a Arena), o Guaíba em geral, o perfil do Centro visto desde o sul, a beira da praia em Ipanema, o Iberê Camargo (por sinal com duas mostras ótimas, uma do próprio Iberê, que dá gosto), e não escondi as coisas feias e até as constrangedoras, como as horrorosas, lamentáveis e onipresentes grades, a pobreza estética, a miséria social. Eis que a colega polaca pergunta, a horas tantas: “Porto Alegre quase não tem negros, não é?”.

Não, não é. Comecei a explicar algo sobre o tema, e quando vi estava emaranhado em geografia, história, religião, futebol, diversão e sei lá mais o quê. Certo que a população negra não é tão massiva quanto em Salvador (que ela conhece), mas isso não é tudo. Acho que cheguei a mencionar que Porto Alegre, em determinado censo de pouco tempo atrás, era a cidade brasileira com mais centros de prática religiosa afro-brasileira – para espanto de todo mundo, especialmente dos porto-alegrenses.

O fiapo de memória: gente da minha geração para trás, e de um pouco depois, teve experiência direta de convivência entre diferentes classes ao vivo, cotidianamente. Creio que em todos os níveis sociais isso acontecia. Naturalmente com diferenças, a depender do colégio que cada um frequentava, o bairro em que morava, as práticas de sua vida. Mas no geral era certo que convivíamos mais, muito mais do que agora.

Na classe média, região que habito desde sempre, as casas e edifícios não só não tinham grades altas, como não impediam o acesso dos passantes ao interior dos pátios e corredores. Daí por que era comum atender ao pobre pedinte na porta mesmo; e atrás da porta da cozinha as mães guardavam, em sacos de tecido (muitas vezes bordado), restos de pão, que ou eram repassados, com uma xícara café quente, ao faminto, ou seriam triturados para fazer farinha de rosca – bem, eram também tempos em que o consumismo não existia ainda.

Nas escolas, mesmo na generalidade das particulares, era certo que cada um de nós tinha amigos mais pobres e mais ricos. No cinema de bairro, toda a gama social se apresentava inteira. E na rua, a sagrada rua de que não tínhamos medo, acolhia a variedade social e cultural em seu máximo.

O específico fiapo de memória que me veio foi de um vizinho cujo pai era operário e a mãe costureira, vivendo em casa velha de madeira, nos fundos de outra, com um pátio pequeno e úmido – terreiro ideal para memoráveis jogos de bolita.

Não era um mundo paradisíaco, longe disso; mas era um mundo com muito menor discriminação social. E nós não legamos esse precioso valor aos nossos filhos.

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