quinta-feira, 10 de setembro de 2015

pasquale cipro neto
Professor de português desde 1975, é colaborador da Folhadesde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas.

No banheiro do avião

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O caro leitor certamente sabe que volta e meia se fazem pesquisas sobre a capacidade de leitura do brasileiro. O resultado não é dos melhores. As diversas pesquisas parecem convergir para algo semelhante a isto: uma em cada quatro pessoas letradas é capaz de compreender textos de complexidade média.

Relato uma situação que eu mesmo vivi no autoatendimento de um banco. Em apenas um dos equipamentos disponíveis havia uma tabuleta em que se liam estas quatro palavras: "Depósitos somente neste equipamento". Entrei ali para verificar o saldo da minha conta e, já empunhando o cartão, fui direto para o tal equipamento. Gentis, solidárias, algumas das pessoas que estavam na fila dos outros equipamentos me alertaram: "Esse equipamento só faz depósitos". Devem ter visto que eu não carregava nenhum envelope e quiseram "ajudar-me".

Parece claro que essas pessoas leram mal a advertência posta pelo banco, ou seja, entenderam por "Depósitos somente neste equipamento" o que se entende por "Neste equipamento somente depósitos". A advertência deixava claro que só aquele equipamento poderia receber depósitos, o que não significava que aquele equipamento não pudesse fazer outras operações.
E onde entram na história os banheiros dos aviões? Vamos lá. 

O que quase sempre se vê neles depois de algum tempo de voo? O caos... Papéis pelo chão, a pia cheia de água e outras coisas que é melhor não citar. Sei que muita gente só puxa a descarga em casa –e olhe lá–, mas a causa mais provável desse "desleixo" é a incapacidade de leitura e/ou de adaptação a realidades operacionais diferentes das "normais".

Não faltam nos banheiros dos aviões avisos sobre a descarga, o depósito de papéis, o modo de esvaziar a pia etc., mas... Mas isso nem sempre está à vista ou em letras grandes, quase sempre reservadas ao inglês (o aviso em português quase sempre é dado em letras menores, embaixo do que vem em inglês).

Aí entra em cena o segundo e triste capítulo da história: as pessoas que não conseguem resolver esses problemas não se esforçam; conformam-se e/ou julgam que alguém é capaz de construir um avião em que não é possível dar descarga ou jogar os papéis no lixo. Veem o mundo com a mesma limitação que têm.

Convém citar outro ponto: já cansei de "tentar" entrar no banheiro e ser barrado com um empurrão na porta dado por quem está dentro do banheiro. E por que "tento" entrar? Porque vejo a luz verde, a "janelinha" que há na porta com a inscrição "livre", também em verde... As pessoas entram e não acham uma fechadura "normal" e simplesmente devem achar que em avião a coisa é assim mesmo. Eta engenheirada burra essa que projeta aviões!

Aí parece inevitável associar toda essa incapacidade de compreensão, de leitura e/ou de resolução de problemas "inéditos" com outros fatos, como o da compreensão de certas situações do infame cotidiano brasileiro. Imbecis que defendem a violência policial, por exemplo, com argumentos extremamente "científicos" ("Se estava ali, boa coisa não era", "Vai saber o que ele fez" e outras pérolas) provavelmente não resistem a uma avaliação mínima da capacidade de leitura. 

Qualquer semelhança com as faixas que se viram nas últimas manifestações não é mera coincidência ("Pais sem corrupção é pais onde rico manda, pois quem é rico não precisa roubar"). O autor da "frase" precisa melhorar não só a alma, o espírito, mas também o domínio das regras de acentuação da nossa língua. É isso.

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