04 de setembro de 2015 | N° 18284
DAVID COIMBRA
O menino sírio
Como queria não ter visto a foto daquele menininho sírio morto numa praia da Turquia.
Era um menininho de uns três anos de idade. Ele estava caído de bruços na areia, com a cabeça de ralos cabelos negros voltada para o mar.
Um menino de três anos de idade, você sabe no que pensa um menino de três anos de idade? Em rir. Nada mais. Um menino de três anos de idade só faz brincar. Ele parece um bicho. Acho que é por isso que as crianças gostam tanto de bichos. Porque eles são parecidos. Walt Disney foi genial entendendo isso e criando uma cidade de patos, Patópolis, e um rato detetive que tem como melhor amigo um cachorrão bobo. As crianças só podiam adorar.
De que personagem-bicho será que gostava o menininho sírio? Com essa idade, eles gostam dos Backyardigans, que são uns bichinhos meio estranhos, uns insetos, acho. Mas será que ele via os Backyardigans? Será que ele tinha TV em casa? Tomara que sim.
O menininho estava até bem trajado, com uma bermuda azul da ONU, sapatinhos e camisa vermelha. Alguém deve ter cuidado dele no momento de vesti-lo. É um consolo.
Sabe, nesta semana nós entrevistamos, no Timeline da Gaúcha, a mãe daquele rapaz de 17 anos que foi morto a garrafadas em Charqueadas, no mês passado. Ela começou a chorar já na primeira pergunta. Fiquei sem saber como reagir. Gaguejei. Engasguei. Então ela falou:
– Eu cuidei tanto dele, e não adiantou de nada.
Foi aí que descobri o que dizer. Na essência, disse para ela que adiantou, sim. Adiantou. Porque ela zelou pelo filho dela, ela fez tudo para que ele tivesse uma boa vida. Nós não sabemos quanto tempo temos debaixo do sol. Podem ser 17 anos, como o garoto de Charqueadas; podem ser três, como o menininho sírio; podem ser 120, que é o tempo que Deus deu ao homem na Terra depois do Dilúvio, segundo o Gênesis. Ninguém sabe.
Mas, se neste tempo a pessoa amou e foi amada, foi um tempo ganho. A mãe do garoto de Charqueadas deu-lhe amor e cuidados. Ela era a certa. Ela não tem mais seu filho, mas, no tempo que lhe coube, ele viveu em amor. E os filhos dos outros pais, os filhos sobreviventes, os que mataram, que tipo de pessoas eles são? O que sentem os pais deles? Que monstros esses pais geraram? Valeu a pena? Decerto que não.
Talvez o menininho sírio tenha tido alguém que zelasse por ele e o acalentasse. Alguém que lhe vestiu a bermuda, a camiseta, os sapatinhos. Alguém que lhe cortou curto o cabelo preto. Tendo vivido apenas três anos, ele não teve tempo de perceber a maldade do mundo. Mesmo que tenha experimentado o horror dos homens maus que estão provocando o êxodo de sírios e africanos, mesmo que tenha experimentado a insensibilidade de europeus que querem rechaçar tristes refugiados, mesmo assim sua cabecinha deve ter sido ocupada mais por bichos que falam e que não falam, por fantasias de criança, por coisas que fazem rir.
Um menininho, o que ele quer é rir.
Um menininho não faz mal a ninguém, ele não tem malícia, ele não conhece o valor do dinheiro, ele não sente gana de sexo, nem de poder, nem de glória, nada. Ele é como um bichinho. Gosto de fazer cócegas em meninos, para vê-los rir. Mais lindo que a risada de um menino, só um menino dormindo. Como é bonito ver um menino dormindo. Aquele menininho sírio parecia estar dormindo naquela praia. Mas, não. Ele estava morto. Morto. Aos três anos de idade. Não, ah, Deus, não. Não queria ter visto a foto daquele menininho.
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