05 de setembro de 2015 | N° 18285
CLÁUDIA LAITANO
Ética doméstica
Senti que a mãe tinha ido com a minha cara, mas meus 19 anos não deveriam impor muita confiança para quem estava prestes a entregar a filha aos cuidados de uma estranha. Antes de decidir se me contratava ou não, ela me propôs um último teste: uma troca de fraldas. Gelei. Nunca tinha trocado uma fralda, muito menos tomado conta de uma criança por mais de 10 minutos. Mas o bebê gostou de mim, e eu gostei do bebê, e a mãe, por algum motivo, achou que essa simpatia mútua compensaria minha inabilidade no teste da fralda.
Aprendi muita coisa no período em que trabalhei como babá em San Francisco, nos Estados Unidos, enquanto estudava inglês e juntava dinheiro para um mochilão na Europa. A primeira foi que trabalhar como babá sem envolver-se afetivamente é quase impossível. Como cuidar de crianças sem abraçar, beijar, pegar no colo, brincar?
No momento em que se abraça, beija e aninha uma criança, estabelece-se um tipo de relação muito mais difícil de medir ou regular. Outra coisa que aprendi é que se você é jovem e trabalha em uma casa de família, mesmo em um país supostamente mais desenvolvido, é bastante provável que um homem que frequenta aquela casa, em algum momento, vai tentar algum tipo de jogo de sedução, mais ou menos sutil.
O excelente filme brasileiro Que Horas Ela Volta?, em cartaz em Porto Alegre, toca nesses dois pontos delicados, os laços afetivos de uma babá com o menino que ela criou e as fantasias eróticas de um homem mais velho com a filha da empregada, mas vai além, abordando as relações de poder e submissão entre classes sociais no Brasil.
Algo que me chamou a atenção, 30 anos atrás, na minha rápida experiência como empregada doméstica nos EUA, foi o respeito à ideia de trabalho que se cultiva por lá. O simples fato de eu estar trabalhando para poder estudar e viajar parecia demonstrar empenho e inspirar respeito, por mais simples e não especializada que fosse a minha função. Desde pequenas, crianças americanas brincam de vender limonada na calçada, enquanto adolescentes ganham algum dinheiro fazendo pequenas entregas ou cuidando das crianças da vizinhança. Quem respeita o trabalho costuma respeitar quem está trabalhando.
No Brasil, só pobre se orgulha de ver o filho trabalhando aos 18 anos. A classe média prefere ver o filho apenas estudando – de preferência, fora. Trabalha quem precisa, estuda quem pode. O que nos falta em ética do trabalho, compensamos com uma legislação trabalhista forte, que trata de proteger os trabalhadores de seu desprestígio social.
As domésticas brasileiras, porém, pareciam viver no pior dos mundos: nem seu trabalho era valorizado, nem a legislação trabalhista as protegia dos abusos. A partir do mês que vem, quando começa a ser obrigatório o pagamento do FGTS para empregados domésticos, encerra-se um demorado processo de abolição da desigualdade: a categoria passa finalmente a gozar de todos os direitos dos outros trabalhadores.
Por que demoramos tanto? O filme Que Horas Ela Volta? nos juda a entender.
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