sábado, 12 de setembro de 2015


13 de setembro de 2015 | N° 18293
MOISÉS MENDES

O que deixamos de ser


Quando passar na frente do casarão ao lado do Palácio Piratini, pense que aquele prédio abrigou um dos mais atrevidos gestos da política gaúcha. O casarão era a sede da Assembleia Legislativa. Aconteceu em 1947, no processo de redemocratização. Getúlio Vargas havia sido deposto dois anos antes.

A nova Constituição brasileira tinha um ano. Walter Jobim, do PSD, fora eleito governador. O trabalhista Leonel Brizola tinha 25 anos e estreava na política como deputado.

Outros deputados da época: João Goulart, Fernando Ferrari e José Diogo Brochado da Rocha, também do PTB, Mem de Sá e Carlos de Brito Velho, do PL, Tarso Dutra, Nestor Jost e Francisco Brochado da Rocha, do PSD, Daniel Krieger, da UDN, e Dyonélio Machado, do PCB.

Naquele ano, o Rio Grande decidiu que seria parlamentarista. O único. Em um país presidencialista, os constituintes queriam um governo de gabinete. Os gaúchos não iriam sair de uma década de ditadura para uma democracia de meia-tigela. Seríamos os europeus do Brasil.

O sistema proposto pelo Partido Libertador de Raul Pilla, o pregador do parlamentarismo, foi aprovado por uma articulação do próprio PL com o PTB e o PCB. No dia 8 de julho de 1947, a Constituição promulgada definia: teríamos um presidente, um chefe do secretariado (o “primeiro-ministro”) e seus secretários.

Os secretários se submeteriam à vigilância da Assembleia, que poderia, por voto de desconfiança, mandá-los embora quando quisesse. Mas o governador somente poderia dissolver a Assembleia a partir de 1952. O Rio Grande parlamentarista durou 10 dias. O Supremo acabou com a brincadeira ao acolher, por 10 votos a zero, uma ação de inconstitucionalidade do governador.

Tudo está contado no livro Os 10 Dias em que o Rio Grande do Sul foi Parlamentarista, organizado pelo jornalista José Bacchieri Duarte (edição da Assembleia Legislativa, 2003).

Foram quatro meses de debates. Discursos e apartes são o melhor do livro. Os deputados – provocados por Mem de Sá, o autor da emenda parlamentarista – citavam Louis Antoine Léon de Saint-Just, Montesquieu, Robert Redslob, Hans Kelsen, Alexandre de Lameth, John Locke, Léon Duguit, Maurice Hauriou, James Madison. Não citavam brasileiros do Direito, do constitucionalismo e da política. Citavam os clássicos.

Alguém chegou a dizer que o Rio Grande seria como “a Velha Albion” – seríamos uma nova Grã-Bretanha. Comparavam, em detalhes, as Constituições da Europa e dos Estados Unidos. Sabiam até que as melhores cartas magnas foram elaboradas depois de 1918. Dyonélio Machado declamava trechos da Constituição francesa. Em francês, claro:

– L’Union française est composée de nations et de peuples qui mettent en commun...

É possível refletir sobre a petulância de 1947 do jeito que se quiser. Foi mais um gesto do nosso sentimento de superioridade e de distinção? Ou foi uma oportunidade destruída pela Justiça, que poderia, quem sabe, ter conduzido o Estado por outros caminhos?

E pensar que eles falavam dos franceses com intimidade. E que hoje há até quem nos proponha o debate de saídas para a crise política, do Rio Grande e do Brasil, a partir das ideias de um cantor medíocre.

Eles debatiam Léon Duguit (1859-1928), o sábio que levou para o Direito o princípio da solidariedade social. Nós debatemos Fábio Júnior. Que tempos.

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