segunda-feira, 14 de setembro de 2015



14 de setembro de 2015 | N° 18294 
L.F.VERISSIMO

Audiências


Sábia é a Inglaterra, que inventou o poder bipartido: uma parte governa enquanto a outra dá show. A parte que faz as leis e toma as decisões de Estado é o parlamento, que também é dividido: de um lado, os comuns; do outro, os lordes. Estes não mandam nada. Só se reúnem na sua Câmara, desconfia-se, para dormir a sesta. Há um movimento para acabar com a Câmara dos lordes, um anacronismo nacional comparável à caça às raposas, que já foi proibida. Dizem que só não mandaram os lordes para casa e fecharam sua Câmara porque ainda não conseguiram acordar todos.

O show quem proporciona é a família real, que monopoliza os paramentos do poder sem as suas responsabilidades. Ou com responsabilidades limitadas, além do seu papel como símbolo da nação e protagonista de uma novela de grande audiência que já dura quase 2 mil anos. A rainha faz o discurso inaugural do ano legislativo e recebe a visita protocolar do primeiro-ministro da ocasião uma vez por semana, no que não passa de uma pantomima de poder compartilhado.

Faz sucesso na Broadway e em Londres uma peça intitulada A Audiência, que trata destes encontros regulares em que Elizabeth II é informada pelo primeiro-ministro sobre o estado do seu reino, começando por Winston Churchill, quando ela ainda era uma moça. Na Broadway, a rainha é Helen Mirren, que se especializou em ser Elizabeth no cinema. Em Londres, onde vimos a peça, ela é Kirstin Scott Thomas, ótima. As duas trocam de guarda-roupa várias vezes e envelhecem sem nunca sair de cena.

As conversas da rainha e dos ministros durante as audiências são imaginadas, mas são fiéis aos fatos e ao clima de cada época, e à personalidade conhecida de cada visitante do palácio. Inventar o que foi dito nos encontros permite ao autor, Peter Gordon, cometer algumas ironias. Por exemplo: a justificativa de Anthony Eden para a desastrada intervenção inglesa e francesa no Egito, diante da ameaça de nacionalização do Canal de Suez por Nasser, é idêntica, palavra por palavra, à usada por Tony Blair para justificar a intervenção no Iraque. E Gordon sugere que o ministro favorito da rainha, com quem ela se sentia mais à vontade, era o socialista Harold Wilson (que chega a dizer, na peça, “Eu sempre soube que vossa majestade era de esquerda”). A visita mais antipática é a de Margaret Thatcher.

O último primeiro-ministro a conversar com Elizabeth é o atual, James Cameron, que fala, fala até se dar conta de que a rainha está dormindo – e aproveita para tirar uma foto dela com seu celular. A gente entende o cansaço de Elizabeth, cujo reinado já é o mais longo da história da Inglaterra. Afinal, são quase 2 mil anos de show.

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