sábado, 5 de setembro de 2015


06 de setembro de 2015 | N° 18286 
CARPINEJAR

Ele morreu me dando a mão


Sou um mensageiro, um carteiro à paisana. Desde pequeno, sinto que psicografo os vivos para os vivos. Mas não imaginava que pudesse estar envolvido seriamente num outro casamento.

Descobri que o aposentado Luiz Fernando, 60 anos, conhecido como Beliche pela família, morreu segurando o recorte de minha crônica “O amor depois do divórcio”.

Ele dormiu numa quinta-feira, em 4 de abril de 2013, e não acordou mais, devido a uma parada cardíaca.

Durante um mês, não tirou o texto publicado em Zero Hora (17/3/2013) dos seus bolsos. Transportava da calça ao casaco. Virou sua segunda identidade: amassada, dobrada, com a tinta curtida do braile da releitura.

Não largava a proximidade com aquelas palavras, que se transformaram em seu pingente de São Jorge, seu escapulário de papel, cortado bruscamente com as próprias mãos da revista Donna.

Entregaria a crônica para sua ex-mulher Ana Maria. Estavam separados havia cinco meses, depois de 15 anos dividindo a mesma casa.

Angustiado com o fim da relação, porém esperançoso de que isso não significava o fim do amor, naquela confusão de não prever o que virá e buscando corrigir os seus erros.

Ele decidira não continuar distante da paixão de sua vida, apesar das brigas e dos desentendimentos, só que faleceu a uma semana da audiência de divórcio.

Luiz Fernando acalentava o sonho de ler a crônica em voz alta na sessão do Juizado. Planejara uma reaproximação maiúscula, contundente, definitiva. Seria sua forma de pedir desculpas e assinalar o quanto aprendera com a distância e o sofrimento.

Vinha decorando o meu texto, memorizando letra por letra, vírgula por vírgula, sendo dono da reflexão mais do que eu já fora um dia:

“Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito. Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto. Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas. Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento”.

Fui sua última carta, fui sua confissão, fui seu testamento, fui sua boca murmurando beijos, fui seu braço formigando abraços, fui o seu derradeiro aceno.

Ele nunca declamou a crônica para sua ex-esposa, nunca expressou o quanto amargava a ausência de sua companheira, nunca admitiu a saudade feroz e inimiga que consumia a sua paciência.

O que ele não desconfiava é que Ana Maria também queria se reconciliar.

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