sábado, 29 de março de 2014


30 de março de 2014 | N° 17748
FABRÍCIO CARPINEJAR

Chore por mim Argentina!

Tinha esquecido o que é pisar em cocô de cachorro até visitar Buenos Aires.

Era atalhar a praça: pisava na m. Era descer do carro: pisava na m. Era atravessar a rua: pisava na m.

Quando vi placa de não pise na grama entendi como ironia. Não pise no cocô da grama. A grama é a última visita dos meus calçados.

Passei noites escovando meus tênis em baldes, enfrentando a repulsa de tirar a porcaria dos frisos.

Ninguém merece lavar as solas no tanque. Uma escovinha jamais resolve, é preciso partir um prendedor e cavar os resquícios em linhas horizontais e verticais. Serve faquinha velha, desde que não reponha na gaveta.

É o equivalente a jogar um cubo mágico com a nojeira. Mexer o quadrado de um lado e de outro. O nariz desaparece para não influenciar a boca.

Fui figura desagradável em vários momentos portenhos. Entrava em espaços fechados (teatro, livraria e cinema) e alguém gentilmente me informava que não cheirava bem.

Abortei sessões pela metade, frustrei passeios, incomodei a família com desengonçado tango.

Estava desacostumado. Foi quando percebi o quanto Porto Alegre evoluiu nos hábitos.

Recebi aquela saudade boa, que vem do orgulho.

Eu não mais atolo meu pé em nenhum cocô de cachorro na minha cidade. Faz muito tempo. Quase uma eternidade.

Na minha infância, ir para a escola consistia num caminho com obstáculos. Não havia chance aos distraídos. Observava a lua se despedindo do céu e já pagava o pedágio do chão.

Derrapava em dois cocôs por semana. No mínimo. E muitas vezes de chinelo, com a matéria gosmenta e viscosa atingindo os pés. Outras vezes, encardia o cadarço, spaghetti al sugo.

Nada disso mais acontece. Os donos dos cães porto-alegrenses modificaram radicalmente sua conduta. Civilizaram as calçadas. Recolhem as necessidades de seus cachorros no ato. Todos passeiam com uma sacolinha plástica. Quem esquece é malvisto pelo bairro, banido moralmente das redondezas. Existe uma fiscalização sutil, uma educação de respeitar o próximo, de poder sonhar livremente com poemas e suspiros sem se importar em tropeçar nos contratempos mundanos.


Minha mãe sempre me consolava dizendo que pisar em cocô de cachorro significava sorte. Prefiro ser azarado a ser argentino.

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