segunda-feira, 10 de março de 2014


10 de março de 2014 | N° 17728
L. F. VERISSIMO | L.F. VERISSIMO

A mula manca

Sassaricando, o musical das marchinhas de Carnaval reunidas por Rosa Maria Araujo e Sergio Cabral (rima intencional), continua um sucesso e ainda não entrou em recesso (outra!). É um espetáculo para ser visto mais de uma vez que eu mesmo vi três (outra!). Incluindo a versão infantil, linda, com a Lucinda (chega). Além da boa música, bem interpretada, Sassaricando é um tratado sociológico involuntário, o retrato de um certo Brasil – o Brasil de antes do duplo sentido. A não ser para quem vê algum tipo de alusão erótica na perna de pau do pirata – e, claro, no próprio verbo “sassaricar” – todas as marchinhas de antigamente são de uma inocência límpida.

O que não falta em muitas delas é o que hoje se chamaria de incorreção política. Uma declara que a única coisa a fazer com mulher feia é matá-la, uma espécie de eutanásia que, supostamente, qualquer delegado ou juiz da época entenderia. Várias outras fazem a apologia da bebida em excesso e brincam com o vício do alcoolismo, glorificando a danada da cachaça, que ninguém quer que lhe falte.

A homofobia entrou no mundo das marchinhas antes do termo se tornar conhecido: a cabeleira do Zezé só podia significar uma coisa, visto que ele não era nem bossa-nova nem Maomé. Que cortassem o cabelo do veado. E o que dizer da Maria Sapatão, que de dia era Maria e de noite era João? Cantava-se tudo isso sem medo de reprimenda ou revide. Que ninguém, naquele Brasil, entenderia.

Não sei quando a inocência começou a acabar. A Rosa Maria e o Sergio preferiram não incluir, que eu me lembre, nenhum exemplo da transformação. Talvez ela tenha começado com a “Índio quer apito”, uma anedota musicada sobre o que o índio exigia da madame com incontinência flatulosa. Não sei se antes ou depois apareceu uma marchinha que dizia: “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”. Foi a música mais cantada do Carnaval de não me pergunte quando. O que queria dizer a mula manca? E, especialmente, o que era “rosetar”? Recorrer ao dicionário não adiantava. O Aurélio dizia que “roseta” era um tipo de espora.


O “rosetar” da música seria, então, usar as esporas nos flancos, presumivelmente da mula manca, para fazê-la andar. Uma explicação que não satisfazia. Que estranha ambição seria aquela, de impelir um pobre animal claudicante com esporas? Mas “arrá”, diziam os mais sabidos. Quem não entendia o que era “rosetar” ainda não tinha vivido. O que a marchinha significava era que nada, nem uma “mula manca” – duplos sentidos à vontade – impediria que a partir de então se rosetasse sem parar no país. Há quem date daí o nascimento do Brasil moderno.

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