quinta-feira, 27 de março de 2014


27 de março de 2014 | N° 17745
PEDRO GONZAGA

A música da garota estranha

Coisas que as pessoas deixam. Músicas que as pessoas deixam. Por vezes um velho LP que já não toca (foi-se há muito a agulha que lhe arranhava a pele – e como não lamentar o pudor desses novas tecnologias em que nada se vê), uma fita K7, um CD feito para durar cem anos, mas cujo brilho apresenta translúcidas falhas.

Por vezes, no entanto, as pessoas deixam a música apenas em nossa memória, ativada subitamente por essa potência da arte de ser também matéria sublimada, transformada em pensamento, e pensamento sensível, feito de imediatas irradiações de alegria e tristeza, calma e inquietação, que os estímulos da melodia e da letra erguem, de súbito, quando toca no rádio uma canção como esta, que certa vez me deixou uma garota de cabelos curtos, talvez um pouco estranha, mas estranha de um jeito bom, estranha para minha congênita caretice, uma canção que mesmo depois de tanto tempo vivifica um nariz coberto de sardas e uns olhos pequenos que pareciam abertos a estilete na face.

E a ti agradeço, garota estranha, por ter deixado também essas sensações periféricas no tato, no olfato, no paladar, convertendo-me, por cerca de três minutos, em poeta simbolista, senhor das mais agudas sinestesias.

Ter uma música. Não digo que tenhamos chegado a isso, a garota estranha e eu. Unia-nos a amizade, vez ou outra aquilo a que se chamava amizade colorida. Me pergunto se meus alunos ainda usam esse termo, se não o trocaram por algo mais direto, tão menos sugestivo (gosto de pensar que a própria ideia de humanidade depende do poder de sugerir).


Seja como for, sempre admirei, malgrado o deslavado pieguismo, esses casais que possuem “a nossa música”, e era sobre isso o que eu queria falar. Porque o mundo é um lugar inóspito, sabemos disso, habitado por planetárias solidões, tendemos, subjugados por sei lá que força, a minar os afetos e ali estão aquelas duas criaturas a dizer “essa era a música que tocava quando nos beijamos pela primeira vez”, “essa era a música que ela me obrigava a dançar para fazermos as pazes.” 

Porque só há uma maneira de sentirmos mais. É sentirmos juntos. E dos cultos religiosos aos concertos de rock, dos bailes carnavalescos a um par dançando na sala, só a música pode operar essa forma de comunhão. Mesmo entre as garotas estranhas e os cronistas mais quadrados.

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