terça-feira, 11 de março de 2014


11 de março de 2014 | N° 17729
DAVID COIMBRA

Chora, macaco imundo

Machiavel dizia:

“Todos veem o que tu pareces, poucos sentem o que tu és”.

Eu digo:

“Às vezes é bom começar com uma citação. Dá o peso da Verdade ao texto”.

Mas não estou sendo cínico. Acredito na máxima de Machiavel, que, de resto, era homem inteligentíssimo. Você sente o que você é. Você tem, em algum lugar do fundo do peito, uma ideia do que é a sua vida. Você tem a sua própria história incrustada na alma, e você precisa ser coerente com essa história, ou implodirá psicologicamente.

Por exemplo: aquele sujeito musculoso que espanca gays na rua. Ele passa a imagem de que é um machão, e é como todos o veem. Ele também quer acreditar que é assim, foi essa a história que construiu para si mesmo. Mas, nas profundezas do seu ser, ele sente um incompreensível desejo homossexual. E é por isso que ele bate nos gays: para expulsar um desejo que não deve sentir; um desejo que ele, mesmo sentindo, não pode reconhecer que sente.

Porque, se reconhecer, estará sabotando a história que escreveu em sua alma e que apresenta com orgulho para os outros. O espancador de gays não chega a ser um gay frustrado, mas é uma pessoa que está sempre na iminência de se tornar incoerente com a sua própria história. Dramático.

Um país também tem uma imagem externa e uma história interna. Para o exterior, o Brasil construiu uma imagem de bonomia, de alegria, de tolerância e de felicidade. Durante muito tempo o brasileiro quis acreditar nisso, mas a história do Brasil teima em desmentir essa crença.

Vou citar um único fato que, como o desejo homossexual recôndito do machão, implode a história o Brasil de dentro para fora: por aqui houve 300 anos de escravidão. Fomos o último país a abolir a escravatura. E no Brasil não houve, como houve nos Estados Unidos, programas de integração dos ex-escravos na sociedade. E no Brasil as chamadas ações afirmativas são tardias, malfeitas e quase inócuas. E no Brasil nunca se produziu um filme como esse ganhador do Oscar que está em cartaz, “12 anos de escravidão”, que é uma exposição honesta e crua da história dos Estados Unidos para o mundo exterior. Este filme é como uma confissão. É como se o espancador de gays um dia admitisse: sim, eu sinto um desejo que não gostaria de sentir.

Os 300 anos de escravidão do Brasil são uma mácula horrenda que o Brasil jamais teve coragem de expor. Uma culpa nunca expiada. E, mais do que mácula e culpa, é um episódio definidor do caráter e da história do brasileiro. Por isso, toda reação a manifestações racistas será bem-vinda no Brasil. Ser chamado de gringo ou de alemão nunca foi pejorativo. Chamar alguém de macaco é ofensa no mundo inteiro, pela conotação histórica que a palavra ganhou. Pelo que o homem branco fez com o homem negro.


Torcedores gremistas juram não estar sendo racistas quando cantam para os colorados “chora, macaco imundo”. Está bem. Vou acreditar que não sejam, sou um crédulo. Mas a palavra é racista. É uma injúria eterna e universal, quando dita para um homem negro. É preciso evoluir até no xingamento. A torcida do Grêmio bem pode encontrar uma forma mais civilizada de agredir o tradicional adversário.

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