16 de março de 2014 | N°
17734
MARTHA MEDEIROS
A arte de perder
Quando algo é subtraído da minha vida, logo lembro o
poema de Elizabeth Bishop, A Arte de Perder, em que ela diz que perder não é
nenhum mistério. Só perdi bobagens na minha infância e puberdade, nada que
fizesse falta a ponto de me doer até hoje. Depois, adulta, perdi alguns afetos
importantes (“tantas coisas contém em si o acidente”), e agora dei para perder
itens materiais que desaparecem de uma hora para outra. Começou com minha carteira
recheada de documentos e cartões, sumida num passe de mágica, nunca mais a vi.
Dia desses, bobeei de novo. Das
primeiras horas da manhã até o início da noite, revirei a casa atrás do meu
smartphone (“perca um pouquinho a cada dia”), e acabei encontrando-o muito
tempo depois em cima da máquina de lavar, no modo silencioso, entre uma pilha
de jornais – esquecido em algum momento em que fui dar de comer para o gato na
área de serviço.
Comentei recentemente que estou
entrando na fase de não juntar lé com cré (“depois perca mais rápido, com mais
critério: lugares, nomes, a escala subsequente”), as palavras evaporam da
lembrança – isso durante conversas fiadas. Textos por escrito se salvam porque
podem ser pensados e repensados antes de irem para o jornal.
Não perco a fé, pois um lampejo
de crença é preciso ter para levantarmos da cama todas as manhãs, mas cada vez
que assisto aos telejornais e suas más notícias, a esperança desaparece como
uma carteira, um celular. Não sei se voltará.
“Aceite, austero. A chave
perdida, a hora gasta bestamente”.
Perder chave não é problema,
sempre há uma sobressalente, e a hora gasta bestamente é perda divertida,
saudável, moleca, venero as horas gastas bestamente. Sou pontual não só por
educação, mas para me sobrar tempo para o nada.
Mas andei perdendo meus óculos de
grau. E isso mudou tudo, cara Elizabeth Bishop.
Encomendei um novo que levou 10
dias úteis para ficar pronto, 10 dias que para mim foram de imagens turvas,
nebulosas. Não enxergava as mensagens que chegavam pelo celular (aquele que
perdi e recuperei), nem os sensacionais contos de Nu, de Botas, do Antonio
Prata (sobre a infância que perdemos e que no livro ele recupera), nem o aviso
na parede do prédio sobre a próxima reunião de condomínio, que sempre perco e
desse mal não me recupero. Meus óculos de grau, onde ficaram?
Perdi na beira de uma praia de
Santa Catarina, ali, na areia, lugar da adolescência que perdi, mas também
recuperei – a maturidade tem dessas proezas.
“É evidente que a arte de perder
não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério”.
Escrevo. Meio cega às vezes, com
menos poesia do que gostaria, aturdida com minhas distrações, mas ainda escrevo
– para não me perder.
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