24
de março de 2014 | N° 17742
L. F. VERISSIMO
Vicariamente
Quando
eu era garoto, louco por futebol, tinha time em vários lugares do mundo. Só os
conhecia pelo noticiário nos jornais, muitas vezes nem sabia a cor das suas
camisetas. Eu era River na Argentina, Tottenham Hotspur na Inglaterra, Racing
(que depois virou Paris Saint-Germain) na França, Internazionale (claro) na
Itália, e tinha time até, não duvido, na Cochinchina. É engraçado isso, viver a
realidade alheia como se fosse a nossa. No caso dos times de futebol, a escolha
se baseava em simpatias fortuitas, nada racionais. Por que Tottenham Hotspur e
não Arsenal? Que possível identificação eu poderia ter com meu time na Ucrânia?
Já
as outras escolhas de lados para os quais torcer, que faríamos ao longo da
vida, seriam mais lógicas, ou mais explicáveis. Viveríamos vicariamente as
histórias dos outros porque projetaríamos nelas as nossas convicções, ou a
nossa própria história irresolvida. Exemplo prototípico disso é a Guerra Civil
Espanhola, na qual muita gente foi lutar contra ou a favor da insurreição de
Franco, mas que teve torcida calorosa em todo o mundo. Você se definia com sua
escolha de lado na Espanha. Nunca tinha sido tão fácil identificar o inimigo –
ou o amigo, para quem via na Espanha insurrecta um bastião contra o
bolchevismo.
De
Mussolini ainda não se sabia se era um bufão inconsequente ou uma ameaça,
Hitler estava recém começando a fazer das suas. Franco era, portanto, a
primeira personificação nítida do assomo fascista na Europa. “No pasarán!”, o
grito de guerra dos legalistas espanhóis foi, mesmo à distância, o grito de
guerra de uma geração. Passaram, mas isso é outra história.
No
Brasil vivemos vicariamente a história de outros países americanos como se
fosse a nossa, ou como se decidisse a nossa. Cuba, por exemplo, está no centro
do debate esquerda/direita no país há anos. É um exemplo admirável de resistência
à prepotência norte-americana e de sociedade solidária em que saúde e educação
públicas são prioritárias ou um exemplo lamentável de país totalitário que
prende seus críticos, e seus benefícios sociais não compensam a falta de
liberdade, dependendo do seu lado. A polarização das opiniões não permite que
se torça pelo meio-termo, também conhecido como a visão de cima do muro:
admirar o admirável e lamentar o lamentável, sem esquecer que o que se vê de
longe são as versões e não os fatos.
Muitos
vibraram com a ascensão do Allende ao poder no Chile como se ele tivesse
chegado ao Palácio do Planalto, e vê-se que, hoje, muitos acham que o que o
Brasil precisa é de um bom pinochetaço. Também vivemos vicariamente na
Venezuela, onde a história acontece em extremos tais que tornam difícil sequer
identificar os lados em conflito, quanto mais escolher um para torcer. Quando
eu era garoto, não havia essas hesitações. O River era o time da elite
argentina? Aquilo não me interessava. Era o meu time e pronto.
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