13 de março de 2014 | N°
17731
L. V. VERISSIMO | L.F.
VERISSIMO
Valladolid forever
Valladolid é uma cidade de 300
mil habitantes no noroeste da Espanha. Foi lá que se casaram e reinaram os
monarcas católicos Isabel e Fernando, foi lá que viveu Miguel de Cervantes e
morreu Cristóvão Colombo. E foi lá que em 1550 e 1551, diante de uma junta de
doutores e teólogos convocada pelo rei Carlos V, o historiador eclesiástico
Juan Ginés de Sepúlveda e o frei Bartolomeu de las Casas se reuniram para
debater a colonização espanhola do Novo Mundo e o que fazer com seus nativos,
além de catequizá-los.
Las Casas voltara do Novo Mundo e
tinha uma visão humanitária das suas populações subjugadas. Pregava a sua
cristianização benévola. Sepúlveda era um escolástico sem experiência fora do
mundo acadêmico e um seguidor da teoria aristotélica segundo a qual seres
inferiores são naturalmente escravizáveis. Assim, para Sepúlveda, os nativos
poderiam ser ao mesmo tempo cristãos, para o caso de terem alma a serem salvas,
e escravos, para ajudar na pilhagem da sua própria terra.
No famoso debate de Valladolid, o
império espanhol pretendia fazer um exame de consciência depois dos excessos da
conquista, uma espécie de faxina depois da chacina. O que Las Casas e Sepúlveda
estavam realmente discutindo era se índio é gente ou não é gente e, portanto,
qual era o tamanho da culpa dos conquistadores. O fato de os nativos terem
almas que respondiam à catequese não provava nada, na época também se discutia,
com o mesmo ardor intelectual, se bicho tinha ou não tinha alma.
Convencionou-se que Las Casas ganhou o debate, pois tinha os melhores
sentimentos cristãos ao seu lado, mas Sepúlveda ficou com a razão. A pilhagem
do Novo Mundo continuou, com a cumplicidade involuntária dos nativos – e
continua até hoje.
O debate de Valladolid se
eternizou. Afinal, os miseráveis do hemisfério são gente ou não são gente? Os
bons sentimentos cristãos do Las Casas impediram que a divisão entre
saqueadores e saqueados no continente se aprofundasse ou só serviram para
encobrir o abismo com o manto da caridade inútil, que só satisfaz o caridoso? Por
que será que todas as tentativas de romper essa maldição no hemisfério acabam
em golpe ou farsa, com os eventuais insurgentes fazendo o mesmo papel de bichos
exóticos que os nativos faziam diante dos colonizadores do século 16?
Conforme o adágio, não existe
pecado abaixo da linha do Equador. O Henry Kissinger, sem saber, fez uma
adaptação geopolítica da frase quando disse que ninguém faz História no sul do
mundo. O que é outra maneira de duvidar de que aqui haja gente, ou pelo menos
gente consequente. Talvez por modéstia, não se lembrou de dizer que quando
aparece um decidido a não ser mais escravo, como o Allende no Chile, é
rapidamente abatido.
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