Ferreira
Gullar
Quisera ser um
gato
Alegra-me
a confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu
Fora
os fantasmas que me acompanham e me fazem refletir sobre o sentido da vida,
vivo eu, neste apartamento, com uma gatinha siamesa. Que é linda, não preciso
dizer, mas, além disso, é especial: quase nunca mia e, quando soa a campainha
da porta, se arranca. Nem eu sei onde ela se esconde.
Ela
é, portanto, muito diferente do gatinho que, antes dela, me fazia companhia e
que se foi. Morreu de velho, já que nunca havia adoecido durante seus 16 anos
de vida. Quando adoeceu, foi para morrer. Não preciso dizer que fiquei
traumatizado e não quis mais saber de outro gato. Amigas e amigos me ofereceram
um substituto para o meu gatinho, e eu respondia que amigo não se substitui.
Os
anos se passaram, a dor foi se apagando, até que um belo dia, minha amiga
Adriana Calcanhotto chegou aqui em casa com um presente para mim: era uma
gatinha siamesa. Faltou-me coragem para dizer não, mesmo porque a bichinha me
encantou à primeira vista. Manteve-se arredia por algum tempo, mas logo me
aceitou e nos tornamos amigos.
Hoje
me sinto praticamente lisonjeado pelo fato de que, por medo ou desconfiança,
enquanto ela foge de todo mundo, me busca pela casa, sobe em minhas pernas e
ali se deita, isso sem falar que, todas as noites, dorme em minha cama.
Confia
em mim, sabe que gosto dela e que pode contar comigo para o que der e vier.
Essa confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou
eu, mas só o que sou dentro desta casa, me alegra.
E às
vezes, olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não
existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é
imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer,
dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba
o que está acontecendo.
Neste
ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos
consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com
a gatinha.
E
enquanto penso essas tolices, ela --que se chama Gatinha-- se levanta, vem até
mim e começa a se roçar nas minhas pernas, insistentemente. Só então me dou
conta de que está pedindo que eu vá até a cozinha e ponha ração no seu prato.
Ela não sabe que é mortal, mas sabe muito bem que necessita comer e que quem
lhe providencia a comida sou eu.
A
verdade é que vivemos os dois neste apartamento cheio de livros, quadros e
móbiles (feitos por mim, não por Calder, ou seja, falsos móbiles) e nos
entendemos bem. A Gatinha é diferente do Gatinho, é de outra geração, a geração
do pet shop. Por isso mesmo, ela não come carne nem peixe, só come ração.
Consequentemente,
ao contrário do Gatito, que subia na mesa para xeretar meu almoço, ela não está
nem aí para comida de gente, só quer saber de ração. E tem mais: só pode ser
aquela ração; se mudar, ela não come, cheira e vai embora.
Aliás,
isso criou um problema sério, quando a ração que Adriana trouxera terminou.
Como não entendia de rações, ao ver que a dela acabara, fui a um pet shop aqui
perto para comprar e, como não tinha a dela, decidi comprar qualquer outra, mas
fui advertido pela dona da loja de que teria que ser da mesma ração.
Fui
a outra loja, bem mais longe, e lá também não tinha a tal ração. Pedi a meu
neto que a comprasse num pet shop do Humaitá, bairro onde ele mora, e nada, lá
também não havia. Desesperado, liguei para Adriana que, imediatamente, me fez
chegar aqui em casa dois pacotes com a raríssima ração que a gatinha comia.
Respirei, aliviado.
Depois
aprendi que para evitar que ela morra de fome, no caso de faltar sua ração
exclusiva, há que ter em casa uma ração parecida e ir misturando à sua até que
se acostume. Coisas de gatos modernos, muito diferentes daqueles que, outrora,
vagabundeavam aqui pelos telhados e pela rua.
Mas,
se mudou a ração, não mudou a razão que me fez adotá-la como minha companheira
de todas as horas, que me acorda, pontualmente, às seis horas da manhã, vindo
cheirar meu rosto sob o lençol. E agora a vejo, ali, a poucos metros de mim,
deitada na poltrona, livre da morte, nesta tarde de março, num determinado
ponto da Via Láctea, onde moramos.
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