21
de março de 2014 | N° 17739
DAVID
COIMBRA
Brasileiro não gosta de
pobre
Você
sabe por que o corpo daquela mulher foi arrastado de carro por PMs no Rio?
Aconteceu dias atrás: uma mulher foi morta em tiroteio entre polícia e
traficantes num morro carioca. Os policiais colheram seu corpo do chão e o
atiraram no porta-malas. No caminho de ida para o necrotério, o porta-malas se abriu,
o corpo da mulher foi jogado para fora e ficou pendurado na traseira do carro,
rolando no asfalto por 250 metros ,
até que o motorista percebeu o que ocorria e parou.
Bem.
Por que os PMs fizeram isso? Não foi por maldade. Não era uma vingança, como Aquiles
arrastando o corpo de Heitor em Troia. Nem se tratou de algum tipo de diversão
macabra. Foi apenas por descuido. Pelo seguinte motivo:
Porque
ela era pobre. Brasileiro não respeita pobre, imagina pobre morto. A grande
discriminação, o grande preconceito brasileiro não é o racial, é o social. Uma
amiga minha, jornalista bem conceituada, outro dia ela conversava com um
estrangeiro sobre isso, sobre preconceito, e então disse algo que foi
elucidativo: Se eu casar com um negro, ninguém vai achar estranho, no Brasil.
Mas se eu casar com um caminhoneiro será um escândalo.
O
estrangeiro ficou sem entender nada. Mas é isso. Claro que existe racismo no
Brasil. Em todo lugar do mundo existe racismo, porque em todo lugar do mundo o
homem teme o que lhe é diferente. Só que o Brasil é, de fato, um país
miscigenado, as etnias se misturam e todos, negros, alemães e japoneses,
mulatos, mamelucos e albinos, todos são brasileiros. Se for um brasileiro rico,
será bem tratado, não importa a cor da pele, o tamanho, o formato ou a
procedência. Agora, se for pobre, no máximo contará com a condescendência dos
que se acham paladinos dos oprimidos.
O
pobre é discriminado por todos, inclusive pelos pobres. Os PMs que arrastaram o
corpo daquela mulher decerto não são ricos. Mas, se ela fosse um defunto da
Zona Sul, o tratamento seria outro, teria a solenidade que merece a morte.
O
brasileiro não respeita o pobre porque o brasileiro não se respeita. O
brasileiro não respeita o que é, nem o que faz. Os PMs do Rio não estavam atuando
como oficiais em defesa do cidadão. Não. Eles estavam só fazendo o servicinho
deles, exatamente como faz a maioria dos brasileiros. Tudo é muito casual por
aqui. Você não precisa fazer as coisas com correção, porque ninguém espera
correção de você. A correção é uma exceção. É para os trouxas. O Estado
brasileiro às vezes é um pai provedor, às vezes é um pai omisso, mas sempre é
um pai leniente. É um pai que fecha os olhos aos erros dos filhos.
Você,
que é pai, sabe, ou deveria saber: o filho, quando erra, QUER punição. Se não
houver punição, ele, na hora, ficará aliviado, mas em seu peito estará impressa
a sensação de que o pai não se importa o suficiente com ele e que, se o pai não
se importa o suficiente com ele, ele não tem tanta importância e, se ele não
tem tanta importância, ele não merece respeito e, se ele não sente respeito por
si mesmo, não sentirá pelos outros.
Assim
o Estado e o cidadão. Um Estado que é leniente com o cidadão faltoso, passa o
recado de que a falta do cidadão não é importante, porque o próprio cidadão não
é importante, porque as regras que o próprio Estado instituiu não são
importantes, porque o próprio Estado não é importante. Ou seja: não é
importante ser cidadão, comportar-se como um cidadão. Aquilo, o Estado, não é
dele nem faz parte dele; é terra de ninguém. É o Estado lá em cima e o cidadão
aqui embaixo.
A
punição do cidadão faltoso indica zelo do Estado, indica que o Estado e o
cidadão são parte de uma mesma coletividade. O pobre, o rico e o remediado são,
todos, cidadãos, e é isso que faz deles importantes, não o fato de serem
pobres, ricos ou remediados.
Os
PMs que arrastaram aquela senhora no Rio não se consideram cidadãos e não
consideram a senhora cidadã. Eles não sentiram respeito por ela, porque não
sentem por si mesmos, como cidadãos. Porque falta atenção do Estado. Falta
punição. O brasileiro está clamando por punição. Está ansioso pelo castigo. A
punição educa. A punição forma cidadãos.
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