10
de março de 2014 | N° 17728
LIBERATO
VIEIRA DA CUNHA
Na solidão da tarde
Passei
o último Carnaval em casa e, como já tinha lido todos os meus 5.152 livros,
liguei a TV na solidão da tarde. Foi um susto, descontada a Globo, que ainda
mantém uma certa dignidade e se dividiu entre reprisar os desfiles da Marquês
de Sapucaí e a festa do Oscar.
Não
vou condenar todos os demais canais. Mas em alguns me vi devolvido à Itália dos
anos 1980, àqueles incríveis programas em que nada era proibido, aí incluída a
exploração do absurdo, da privacidade, do escândalo e da lógica formal.
A
receita de todos é parecida. Em um deles, alguém se diz portador de um segredo
até ali inviolável. O apresentador aumenta em mil decibéis a importância dessa
verdade oculta, que fará muito mal, uma vez revelada, a alguém presente. E a
partir daí se prolonga um jogo de interrogação e negativa entre dois pobres
seres humanos, até que a versão correta venha à tona com todas as suas consequências.
Em
outro desses programas da tarde, uma tia acusa a sobrinha agora rica de havê-la
abandonado à miséria. A apresentadora a submete a uma demolidora bateria de
questões, que a tia vai rebatendo como pode. Essa apresentadora é bonita,
segura de si, simpática e, o mais importante: parece estar do lado da anciã. Eis
senão quando são ouvidas as testemunhas da sobrinha. E então lentamente,
firmemente, inexoravelmente são derrubados os argumentos da velhinha. De heroína
traída, transforma-se em insensível candidata a aproveitadora da fortuna alheia.
Nem
vou falar de outros programas com igual ou similar receita. O fato é que neles
se ultrapassam todos os limites da calúnia, da injúria, da difamação. Segredos
de família são rompidos, seres humanos são humilhados, celebridades se
transformam em alvo de acusações sem volta. Os apresentadores dão corda aos
dois lados. Há gentes a favor e contra os interrogados. Se pintar sexo no
embate, tanto melhor. Sobram sempre histórias de família mal resolvidas, os
nomes de irmãos, pais, primos, cunhados são expostos ao público sem direito de
defesa. Combinaram tudo com os russos? – iria perguntar Garrincha, todo um
luminar, diante desses estranhos espetáculos.
Na
Itália dos anos 1980 também era assim, o que, suponho, se devia a Il Cavaliere.
Mas será esse circo o papel da TV? Na França, há décadas, a televisão é um espaço
de promoção da cultura, de óperas a peças de teatro, de noticiários sérios,
investigativos, a filmes de arte.
E no
Brasil, quando atingiremos essas alturas de simples racionalidade e bom gosto?
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