18
de março de 2014 | N° 17736
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Pimenta nos olhos do outro é colírio
Não
era um simples colírio, mas gotas de ouro.
É assim
que minha mulher apelidou o conta-gotas para aliviar a irritação dos olhos.
Seus
olhos não estão mais irritados, a irritação passou para seus bolsos.
O
oftalmologista receitou um medicamento de apenas 5ml que custa R$ 87.
Ela
não acreditou quando foi adquiri-lo na farmácia. Continua não acreditando.
Teve
que parcelar o produto. Em três vezes sem juros.
Nunca
imaginou que iria parcelar um colírio. É o cúmulo da pobreza.
Você
não tem noção do desespero quando ela precisa dele. Da concentração que
desenvolve para umedecer suas pupilas.
Não
posso falar com ela, não posso distraí-la, a casa depende de um estado de
suspensão meditativo.
Katy
deita no sofá. Respira fundo. Mira o alvo com todo o cuidado. Conta até três.
Um,
dois e... pensa direito. E reinicia a contagem.
Não é
um ato corriqueiro. Virou perícia, injeção. Requer a precisão de anestesista.
Nem
pede ajuda para mim – a falha é pessoal e intransferível.
Porque
quando ela erra a gota, perde quase R$ 10. É a lágrima mais cara de sua vida.
Se
ela não está chorando, o desperdício atiça as glândulas lacrimais.
Ela
não comprou um colírio, mas uma TPM a mais.
Ela
não comprou um colírio, mas uma enxaqueca.
Ela
não comprou um colírio, mas um dilema.
Ela
não comprou um colírio, mas um diamante líquido.
Um
transplante de córneas seria mais barato.
Nunca
é a hora fatídica de colocá-lo. Adia o quanto pode.
Só vai
botá-lo em caso de olho morto. Já fica tensa no instante de definir o uso, é seu
momento Hamlet. Anda com o colírio na mão de um lado para o outro da casa:
– Será
que devo ou não devo, eis a questão?
Qualquer
sugestão de minha parte é irrelevante. Ela entra em transe intelectual,
investigação existencial.
Quando
estou em desvantagem numa discussão de relacionamento (o que é bem comum), pego
o colírio do armário do banheiro e ameaço pingar gotas no chão.
Ela
logo para, levanta as mãos para o alto e pede para me acalmar.
É uma
tática que sempre funciona.
O
oftalmologista dela é um excelente terapeuta de casal.
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