15 de março de 2014 | N° 17733
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO*
A SERENIDADE
Como a dissimulação tem cara e crachá, é sempre
desagradável dar notícia ruim e, na falta da verdade, é quase impossível
resgatar a credibilidade indispensável para a preservação do convívio.
Quando Jonas foi internado já
veio com o pacote completo de informações desfavoráveis: tinha um tumor raro de
pleura, que ultrapassara os limites da cirurgia, pois se estendera para o
abdômen, provocando o acúmulo de líquido.
As possibilidades terapêuticas
eram restritas, e a chance de cura, nula. Uma semana depois do diagnóstico,
encontrei-o pela primeira vez. Tinha passado a fase da negação sozinho e estava
em plena revolta. Nada do que se pudesse dizer faria qualquer sentido e ficou
claro que dar ouvido à sua indignação era a melhor forma de oferecer parceria e
ganhar confiança.
A falta de solução favorável
expõe o médico a todos os tipos de represálias: “Tenho lido o que o senhor
escreve sobre os avanços da medicina. Pois fique sabendo que acho a sua profissão
uma grande merda!”. Maturidade profissional nesta situação é ouvir, entendendo
que este comportamento hostil faz parte da doença, e para aumentar a tolerância
não custava nada se imaginar na pele dele. Merda mesmo.
Soube que estávamos do mesmo lado
da trincheira quando ele se ofereceu para participar de qualquer projeto de
pesquisa com drogas novas e experimentais que estivesse em marcha no serviço de
oncologia. Como não havia o que barganhar, ele, rapidamente, mergulhou na
depressão e passava a maior parte do tempo deitado, fitando desinteressado uma
TV sem som. Numa manhã, quando lhe perguntei se ainda não se banhara, ele
simplesmente respondeu: “Acho que as enfermeiras cuidam antes dos pacientes que
têm chance de cura”. Noutro dia, fez um protesto explícito: “Sei que tenho uma
doença terminal, mas diga ao padre que eu não sou um paciente terminal!”.
Uma de minhas últimas lembranças
dele foi o pedido candente para que o ajudasse a contar ao filho de 12 anos o
que estava acontecendo. Soube que o tinha conquistado quando fui convidado para
ser parceiro naquela hora. Foi de doer.
Depois disso, tudo mudou. As
janelas do quarto eram abertas cedo da manhã, o gotejo contínuo do analgésico
era a alforria do sofrimento inútil e havia uma paz naquele ambiente que
contrastava com o desfecho iminente.
Lembrei-me do Jonas lendo a
biografia do Getúlio. Lá, Lira Neto conta que o então jovem deputado comandava
uma tropa de soldados fajutos, recrutados entre a peonada em São Borja, com
poucas armas e nenhum treinamento militar, e agora, aquartelados na margem do
Uruguai, no umbral de uma batalha feroz, comiam churrasco e mateavam,
aparentemente despreocupados. Um velho oficial, picando fumo com calma,
vendo-os assim fagueiros, comentou: “Tenho pena desses jovens, que nem sabem
que vão morrer”. Ao que Getúlio retrucou: “E você, homem, não vai morrer?”. “Eu
vou, mas eu sei!”
Era dessa serenidade que
falávamos. De onde ela vem? Não tenho a menor ideia.
*Cirurgião e chefe do
Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
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