segunda-feira, 24 de março de 2014


24 de março de 2014 | N° 17742
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

A geração traída

Faço parte de uma geração traída. No dia 1º de abril de 1964 apareceu lá em casa um coronel, contraparente distante, que se derramou em hosanas à Redentora. Era hábito nosso receber bem as pessoas, independente de suas posições políticas ou ideológicas. Meu avô deu-lhe toda a atenção, mas quando o bravo militar perguntou minha opinião sobre os acontecimentos daqueles dias, lhe disse que, como estudante de Direito, só podia condenar o golpe. Se queriam derrubar o presidente João Goulart, que promovessem no Congresso o seu impeachment, operação de cujo êxito eu sinceramente duvidava.

O coronel ficou uma onça, engasgou-se, acabou me declarando que metade dos deputados e senadores era comunista, que os próprios padres católicos tiravam cursos de guerrilha na Rússia. Aí foi a vez de meu avô engasgar-se e considerei que, para o bem geral da nação, era melhor calar-me. Afinal, não passava de um garoto.

Assisti a partir de então à demolição da democracia no Brasil, Foram quase 21 anos de férrea ditadura, durante os quais os mais elementares direitos dos cidadãos se transformaram em terra arrasada, aí incluído o simples habeas-corpus, que eu tanto estudara na faculdade. Larguei o exercício do Direito por causa disso. Vi, consternado, que alguns de meus amigos apoiavam o regime de exceção, aquele mesmo que prendia, torturava, matava, sem nenhuma mínima culpa na consciência. Era o terror de Estado, como já mostrei em uma breve crônica aqui mesmo neste caderno.

Uma vez fui a Brasília para tentar concorrer a um cargo técnico em um ministério também técnico. A sumidade que me atendeu, um velho colega de jornalismo aliado do poder em qualquer das formas de que se revestisse, disse que tudo bem, minhas provas preenchiam todos os requisitos, desde que, é claro, meu currículo fosse aprovado pelos órgãos de segurança. Rodei nessa parte. Até hoje me indago que crime terei cometido contra a República.

Enquanto isso, perdi metade de minha vida, começando pela época em que estive na Praça da Matriz para defender a Legalidade. Só fui votar para presidente junto com meu filho, que recém completara 18 anos.

Sim, a minha foi uma geração traída. E o pior de tudo é ouvir hoje, ora de pessoas com alguma instrução superior, ora de motoristas de táxi, que a ditadura foi magnífica para o país, que então não havia crimes nem sequer insegurança, que os militares golpistas seriam bem-vindos se voltassem.


A minha esperança, a minha pobre esperança, é que o meio século de uma tragédia nacional, que se vai celebrar na próxima segunda-feira, sirva para enfim abrir os olhos e a consciência desses filhotes do autoritarismo, do militarismo e do arbítrio.

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