sábado, 29 de março de 2014


29 de março de 2014 | N° 17747
NÍLSON SOUZA

A última notícia

Jornalista perde o amigo, mas não perde a oportunidade de dar uma notícia.

Outro dia, um colega de trabalho ficou doente e passou alguns dias hospitalizado. Lá pelas tantas, recebeu o telefonema amável de outro companheiro de redação que parecia sinceramente interessado na sua saúde. Queria saber como foi a cirurgia, se ele sentia alguma dor, se a família estava bem, até que de repente perguntou:

– Tu nasceste em Rosário ou em Uruguaiana?

O doente saltou na sua cama de manivela:

– Tá fazendo o meu obituário, filho da mãe!

Os dois, felizmente, continuam firmes e fortes por aqui, rindo do episódio. Gente do meu ofício, que não é melhor nem pior do que integrantes de outras tribos profissionais, carrega no sangue esse compromisso irrenunciável com a notícia e uma verdadeira obsessão pela antecipação de fatos. Se sabemos que vai acontecer, por que não deixar o relato pronto? Às vezes, nos quebramos, como no caso de jogos de futebol disputados na hora do fechamento e que têm o resultado alterado nos acréscimos. Já vi muito colega torcendo contra o time de sua predileção para não ter que mudar o texto.

A questão do obituário é mais curiosa. Nada é tão certo como a morte. Então... É raro, mas de vez em quando a imprensa mata alguém que continua vivo. É célebre a história do escritor Mark Twain, que acabou virando referência para casos semelhantes. Ao ler uma notícia sobre seu próprio óbito, ele reagiu com ironia:

– Parece-me que as notícias sobre minha morte são ligeiramente exageradas.

Pois ocorrências desse tipo, que não são incomuns no ambiente jornalístico, estão ameaçadas pela nova tendência europeia do “selfie obituary”, pela qual o próprio morto deixa redigida a sua derradeira notícia. É um desafio e tanto isso de escrever o que desejamos que outras pessoas leiam sobre nós quando não estivermos mais aqui. Como manter a equidistância? Nada mais pernóstico do que um autoelogio póstumo. Nada mais falso do que uma autocrítica sem o risco de vermos sinais de assentimento no rosto dos leitores.

Se tivesse que me submeter a um exercício surrealista desses, apelaria para a objetividade característica da minha profissão:

– Deixou-nos ontem, aos 113 anos, o jornalista...


Pensando bem, é melhor aguardar o telefonema do colega solidário.

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