sábado, 29 de março de 2014


30 de março de 2014 | N° 17748
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

Deu prá ti anos 70

Eu vi a prisão do Marcos Klassmann. Ele era barbudo e cabeludo como um urso, e seus captores carregavam-no por braços e pernas, e ele se debatia com fúria de fera.

Cena forte.

Agora me ocorre: será que foi assim mesmo? Será que foi exatamente como lembro? Faz tanto tempo, eu era um guri e a memória nos engana. A memória é um prédio erguido depois do fato ocorrido, e sua matéria-prima são sentimentos e ressentimentos, crenças e ilusões. Já vi mulheres que amei me transformando em um edifício torto na memória delas. Não sou tão ruim assim, queria gritar, e parar a construção. Não adiantava, os tijolos de desprezo já estavam sendo cimentados.

E eu, eu fiz de algumas mulheres rainhas, semideusas do amor e, mais tarde, quando o tempo me afastou delas e delas só restou a imagem, as reencontrei e percebi, com desalento, que aquele monumento ao ser humano só existia dentro de mim, que ali, na minha frente, havia só uma mulher... igual a todas as outras. Triste. Um homem precisa acreditar que a vida pode ser especial.

Então, não sei se foi bem da forma como contei que se deu a detenção do Marcos Klassmann pelos esbirros da repressão. O que tenho certeza foi do que pensamos sobre os alegados motivos para que o arrastassem de seu apartamento no IAPI: sua agressiva campanha a vereador de Porto Alegre. Imagine que o slogan do Marcos Klassmann era o seguinte:

“Vote contra o governo”.

Quer dizer: Marcos Klassmann estava sugerindo que as pessoas deviam ser contra o governo. Uma afronta. Todos sabiam, nos anos 70, que ninguém podia ser contra o governo, que ser contra o governo era ser contra o Estado, contra o país. Vote contra o governo, no raciocínio de quem estava no governo, equivalia a dizer: vote contra o Brasil. Traição, traição. Ame-o ou deixe-o.

Vote contra o governo. Tão revolucionário na época, tão pueril hoje. A vida se sofisticou, desde então.

Em 79, uma pichação se espalhou por muros e paredes de Porto Alegre:

“Deu pra ti, anos 70”.

No ano seguinte, o Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti lançaram um filme com esse título, mas tenho quase certeza de que as pichações não eram marketing, não antecipavam o filme. Aquilo era de fato a expressão de quem tinha sofrido nos anos 70, como o Marcos Klassmann.

Nós, não. Nós não tínhamos sofrido. Éramos guris, e só o que queríamos era correr atrás da bola durante o dia e das meninas durante a noite. Quando o Marcos Klassmann foi arrancado de casa e levado para algum calabouço sombrio do regime, nenhum de nós ficou escandalizado. Assustados, sim; penalizados, certamente; escandalizados, não. Aquilo era normal. Para nós, funcionava assim mesmo. Nós só conhecíamos a ditadura.

Para nós, não havia nada de estranho, por exemplo, na figura do “pistolão”. O pistolão era um protetor, um homem que gozava de algum poder ou de alguma influência e que, graças a isso, resolvia os eventuais problemas que você poderia enfrentar no trato com o Estado, que, afinal, era quase absoluto. O Estado mandava em tudo e em tudo se infiltrava. O Estado, durante a ditadura militar, era muitíssimo parecido com um Estado comunista, o regime que os militares queriam desesperadamente evitar. O pistolão era o agente oficioso do Estado. Oficioso, sim; jamais clandestino. As pessoas se orgulhavam de contar com a bênção de um pistolão forte. Eram apontadas com inveja na rua:

– O pistolão daquele lá é um general.

Essa era a vida. Ninguém nunca tinha nos dito que poderia ser de outra maneira. Mas os anos 70 passaram e com eles passou o nosso tempo de guris, e começamos a ver que o mundo não precisava ser como estava posto, que havia um tipo de vida diferente em lugares diferentes. Mesmo que as coisas tivessem sido sempre daquela forma, não queria dizer que deveriam continuar a ser daquela forma.

Faz 50 anos que aquele regime foi implantado e 25 que deixou de existir. Hoje, uma geração inteira, como aquela nossa, não sabe o que é viver sob uma ditadura. Não sabe que, numa ditadura, um homem pode ser tirado à força de sua casa e atirado numa prisão só porque disse ser contra o governo. E os que sabem que isso aconteceu, mas que ainda assim se dizem saudosos daquele regime, esses são vítimas dos tais truques da memória. O velho regime, para eles, é como a minha antiga rainha, a semideusa que um dia amei: só existe na memória. Porque, na realidade, uma ditadura é... igual a todas as outras.


Um mês de tantas flores

Elvis morreu nos anos 70.

Elvis, the pelvis.

Mas Elvis não era mais dos anos 70, nos anos 70 ele estava gordo, suado e usando aquelas roupas estranhas, brilhantes, com golas imensas. Os anos 70 começaram com Beatles, seguiram sendo Rolling Stones, que os Stones são intermináveis, estremeceram com os punks dos Sex Pistols, mas foram mesmo, mesmo, da Discoteque. Pelo menos para quem era guri na Zona Norte profunda de Porto Alegre.

John Travolta! As minas queriam que você dançasse como o John Travolta. Mas eu, que não sou de danças, o que poderia fazer diante daqueles concorrentes com cintura de borracha?

Poesia. Não minha, dos outros.

Foi aí que aprendi uns poeminhas para impressionar na noite. Chegava um momento em que o som baixava e eu atacava:

“Quando nasci, num mês de tantas flores,

Todas murcharam, tristes, langorosas,

Tristes fanaram redolentes rosas,

Morreram todas, todas sem olores.

Mais tarde da existência nos verdores

Da infância nunca tive as venturosas

Alegrias que passam bonançosas,

Oh, minha infância nunca teve flores!”


Augusto dos Anjos. Se você é duro para dançar, apele para o Augusto dos Anjos.

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