22
de março de 2014 | N° 17740
CLÁUDIA
LAITANO
A lei e o
desejo
No
início deste ano, visitei pela primeira vez um país de maioria muçulmana – com
a vantagem, não desprezível, de não ter precisado me preocupar em cobrir os
cabelos.
Com
um histórico de boas relações com o Ocidente e uma classe média globalizada, o
Egito convive bem com cabeças femininas descobertas. Nas caóticas ruas do Cairo
ou nos seus luxuosos shoppings centers, é possível encontrar meninas de cabelos
longos e unhas vermelhas conferindo mensagens no celular bem ao lado de uma
moça (senhora?) coberta de preto dos pés à cabeça. É essa convivência entre
extremos culturais que imediatamente chama a atenção do turista de primeira
viagem.
Em
um primeiro momento, o hijab (conjunto de vestimentas preconizado pela doutrina
islâmica) parece destoar dos anúncios de McDonald’s, Armani e Coca-Cola, mas
com o tempo o visitante acaba assimilando essa pororoca cultural como parte do
fascínio de um país que, acreditem-me, todos deveriam visitar pelo menos uma
vez na vida – e não apenas pelas pirâmides.
Voltando
aos véus e a outras coberturas compulsórias das mulheres. A primeira coisa que
preciso dizer a respeito é que sou contra: no Cairo, em Jerusalém, no interior
do Nordeste, nas escolas públicas da França ou em Veneza (onde fui obrigada a
pedir um casaco emprestado para cobrir os ombros para poder entrar na Basílica
de San Marco). Credos religiosos, é verdade, legislam sobre uma série de itens
da vida cotidiana, mas figurino definitivamente não é um deles (ou não deveria
ser), donde fica claro que esses acessórios foram sendo assimilados aos poucos,
em diferentes religiões, não como dogma, mas como recurso de dominação cultural
travestido de índice de pureza, modéstia ou contrição religiosa.
Mais
do que um artifício para tolher a liberdade feminina, o véu que cobre a mulher
sempre me pareceu uma confissão de fracasso civilizatório. Fracasso para
controlar os instintos, ou seja, para pagar o preço que a civilização cobra de
todos que vivem em sociedade. Sim, você pode olhar para mulheres, desejá-las,
ser atraído por elas. Mas não pode tocá-las sem o consentimento delas – nem pode
impedir que elas despertem o desejo de outros homens ou que desejem também. No
limite, o véu que cobre a mulher dos pés à cabeça poupa o homem do esforço de
tornar-se civilizado e de aprender a conter o próprio desejo.
Aqui,
neste lado do mundo, temos assistido nos últimos dias a um outro tipo de
confissão pública de fracasso civilizatório – não velado, como nos países
fundamentalistas, mas explícito. Os casos de assédio sexual em ônibus e metrôs
costumavam ser apenas uma nota de pé de página no desastroso conjunto da obra
do transporte público brasileiro. Com a descoberta de um grupo no Facebook
autointitulado de “Encoxadores”, começou a vir à tona uma rotina de infrações
cotidianas que na grande maioria das vezes não resultam em queixas ou punição. O
anonimato do ônibus lotado parece autorizar o pai de família a fazer com as
outras mulheres o que ele não gostaria que fizessem com a sua. A noção de
coletividade não existe, o direito do outro é apenas uma abstração: só existe o
aqui e agora, entre esta e a próxima estação.
Muitos
homens devem confundir esse tipo de agressão com alguma sutil técnica de
sedução ou apenas se convencem de que seu desejo é uma espécie de lei magna que
se sobrepõe a todas as outras. Em todos os casos, onde a lei é rígida demais ou
onde a liberdade não tem limites, perdemos todos – e não apenas as mulheres.
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