quinta-feira, 14 de julho de 2011



14 de julho de 2011 | N° 16760
ARTIGOS - José J. Camargo*


A distância que nos separa

Existem várias escalas para medir a distância que nos separa dos países desenvolvidos, mas certamente a maneira com que encaramos a doação de órgãos é uma das mais reveladoras.

Se um terço dos casos de morte cerebral, e são milhares por ano, resultassem em doação de órgãos, não teríamos mais lista de espera para transplantes, e acabaria a agonia dos que ficam taquicárdicos cada vez que toca o telefone e têm a consciência de que cada dia que passa, sem um doador, encurta o caminho inexorável para a morte.

Desapareceria também a angústia do médico responsável pelos candidatos ao transplante, vendo que o tempo se extingue, e sendo mil vezes implorado para que não lhes permita morrer.

E não sentiríamos mais a dor de um pai ainda jovem, pendurado em um tubo de oxigênio, refugiado numa pensão barata, tentando encontrar na foto dos filhos distantes a força para a espera, que, ele sabe muito bem, pode ser inútil.

E não teríamos que suportar o sofrimento de uma mãe, que tentou de todas as formas sensibilizar a comunidade e um dia recebeu o chamado do colégio avisando que sua filha adolescente, que tentava desesperadamente manter uma vida normal, morrera na sala de aula.

Quando nossos governos são pressionados a tomar alguma medida, tudo se restringe a normas e decretos, como se por lei pudéssemos nos tornar mais cidadãos. Ignora-se que a doação de órgãos é, antes de tudo, uma manifestação de consciência social que nasce com a educação, e esta, infelizmente, não se impõe.

Precisamos ensinar às nossas crianças o significado de morte cerebral, e de como órgãos condenados a apodrecer podem salvar pessoas iguais aos seus pais e irmãos, e elas intuirão, sem conhecer a lei, que preservar a vida é uma imposição, pelo menos para quem está de bem com ela.

Necessitamos, e muito, sensibilizar os médicos que não trabalham com transplantes e nem conhecem ninguém que precise deles, para que todos os casos de morte cerebral sejam imediatamente notificados à coordenadoria, para que se deflagre o processo de doação.

Nós médicos, compreensivelmente frustrados porque nosso paciente apresentou morte cerebral, precisamos entender que nossa missão transcende a esta perda lamentável, e se continua no esforço de tentar salvar pessoas que nem conhecemos, e que provavelmente nunca terão a oportunidade de nos agradecer.

Precisamos todos de um choque de generosidade, este que é um sentimento indispensável para que a comunidade, através da doação, cumpra o seu papel, na única forma de tratamento médico que depende da sociedade, para que ela própria seja beneficiada.

E se os nossos legisladores, tão ávidos da proposição de emendas, quiserem ser úteis, que proponham a obrigatoriedade deste tema nas escolas de primeiro e segundo graus. Com isso estaríamos a caminho de produzir cidadãos com a noção da solidariedade, mesmo que isso não esteja escrito em lugar nenhum.

Porque só seremos uma sociedade realmente civilizada quando tivermos a grandeza de oferecer espontaneamente os órgãos dos nossos mortos queridos, simplesmente para poupar famílias desconhecidas da mesma dor que nos mutilou!
*Diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre (RS)

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