sábado, 23 de julho de 2011



23 de julho de 2011 | N° 16770
PAULO SANT’ANA


O paladar

Segundo o otologista Sady Selaimen da Costa, o mais importante dos cinco sentidos é o paladar.

Vindo de um homem que opera ouvidos, se especializou em ouvidos, então é porque o paladar é mesmo o primacial dos sentidos, embora pareça incrível que ele possa ser mais importante que a visão e a audição.

Talvez seja o mais importante porque se pode continuar vivendo como cego e como surdo, enquanto que sem paladar é impossível sobreviver.

Eu que o diga, que perdi, pelos paraefeitos da radioterapia a que me submeti, o paladar há 60 dias.

Sem paladar – e sem saliva – fiquei sendo um sub-humano. Porque não consigo engolir nenhum alimento sólido, só ingiro sopas e complementos alimentares líquidos.

Quando tomo uma Coca-Cola, ela tem o gosto de água oxigenada. Quando tento beber uma cerveja, o gosto é de querosene.

Empurrei com o dedo goela abaixo um pedacinho de pão e parecia que eu estava comendo um papel.

E não sei se já escrevi que, como patifamente continuo fumando, fumo Charm e o gosto é de Minister.

A radioterapia me trouxe efeitos incríveis. Por exemplo, me arrancou 90% da barba. Para sempre, até morrer, só terei barba num pedaço do queixo e um pouco abaixo dos meus ouvidos. E o mais ingrato é que meu barbeiro, o Martins, continua me cobrando os mesmos R$ 20 que me cobrava antes.

O bigode, a radioterapia me extinguiu por completo.

Quando não faço a barba (os raros pelos que me restaram), fico ridículo, só existem pelos grandes em três pontos do meu rosto, tem gente que pensa que virei punk.

Aos amigos que me convidam para jantar em suas casas, respondo que só vou se me servirem uma sopa.

Nesses 60 dias já engoli todo o tipo de sopas instantâneas, sopas em pacote. Não aguento mais beber sopas, meus caros oncologistas Cláudio Sá Brito e Carlos Barrios, quando é que vocês vão me retirar deste calvário?

É que a radioterapia queimou por completo, com raios de iodo, as minhas papilas gustativas, estas escamas que nos cobrem a língua.

Foi por isso que perdi o gosto, a gustação, o paladar.

Dizem-me os amigos e os médicos, para me consolar, que o paladar vai voltar.

“Não te preocupa, Sant’Ana, o paladar vai voltar”.

E eu respondo a eles: “Vai voltar? Mas se a minha mulher me trair e fugir com meu melhor amigo, na certa vocês me dirão o mesmo: que eu não me preocupe, que minha mulher vai voltar. O problema é de como voltará, depois de ter sido profanada? E meu paladar não vai voltar profanado, senhores oncologistas?”.

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