segunda-feira, 18 de julho de 2011



18 de julho de 2011 | N° 16764
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Salim Miguel

Toda infância é aquela que imaginamos para nós. A infância real não existe. Filtrada pelos mecanismos de fuga, ocultamento e autoindulgência, ela sempre será idealizada – para o bem ou para o mal. Mesmo Graciliano Ramos, em sua obra clássica, nos inspira alguma dúvida.

A correção e limpidez narrativa de Infância escondem, de passagem em passagem, algumas lacunas – e aí está: toda lacuna, proposital ou inadvertida, é uma ficção.

Dentro dessa lógica, podemos pensar no interessantíssimo livro do escritor catarinense Salim Miguel, chamado justamente Reinvenção da Infância, editado pela Novo Século, de São Paulo. Quem conhece a literatura de nosso país sabe de quem falamos.

Ativista cultural, pertenceu ao famoso grupo Sul, que trouxe o Modernismo ao Estado vizinho, e não sem polêmica. Depois disso, construiu carreira sólida. Ele detém grandes prêmios e distinções – mas isso não é nada, considerando-se a qualidade estética de suas obras, e dentre estas, sobressai Nur na Escuridão, um romance feito de memórias, e que se constitui na sensibilíssima revisão de uma vida. Reinvenção da Infância é, tecnicamente, um romance feito de retalhos do tempo da meninice, e não só.

Salim, escritor que se designa líbano-biguaçuense (viveu em Biguaçu), teve uma infância às voltas com sua ancestralidade, tentando harmonizá-la com o ambiente “brasileiro”. Discute a questão da identidade “árabe” transplantada ao Novo Mundo. Algo semelhante encontramos no melhor romance de Alcy Cheuiche, Jabal Lubnan, e esses são excelentes exemplos do gênero, nos quais podemos incluir também Milton Hatoum em Relato de um Certo Oriente.

Mas então: Reinvenção da Infância é dessas obras em que nos reconhecemos a cada passo, como se revivêssemos, no protagonista, tudo o que julgamos que também nos aconteceu; não falamos na concretude dos episódios, mas no espírito com que entendemos os fatos da vida.

A narrativa, em terceira pessoa, permite essa apropriação sem remorsos da memória alheia. Vivemos, com o protagonista sem nome, os pequenos-nadas de um quotidiano em que a presença dos pais, a um só tempo, esmaga e liberta. Essa infância logo se transforma em adolescência e, com ela, assomam todas as conquistas e perdas.

Ao fim de tudo, a questão dos desajustes étnicos é superada pela condição humana, que ultrapassa as geografias e as diferenças. É um risco recomendar um livro; mas este pode ser indicado com veemência e responsabilidade.

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