sábado, 30 de julho de 2011



30 de julho de 2011 | N° 16777
DAVID COIMBRA


Um jogo de meninos

Eu estava em Ciudad del Este em 1999. Vi o que aconteceu. Ciudad del Este. Um dos lugares mais feios que já visitei. Feio, sujo e perigoso. Andando pelas ruas de Ciudad del Este você sente que ali tudo é extraoficial, que ali tudo o que não é permitido é possível.

Foi em Ciudad del Este que a Seleção Brasileira jogou a primeira fase da Copa América daquele ano. Foi no precário e mal-enjorcado estádio da cidade que testemunhei o maior momento da carreira de Ronaldinho.

Ele tinha 19 anos de idade e vinha de uma façanha. Uma semana antes do Gre-Nal decisivo do Gauchão fora “jurado” por ninguém menos do que Dunga, o Capitão do Tetra. Dunga prometeu “pegar” Ronaldinho no clássico e conquistar o campeonato pelo Inter. Indagado sobre a ameaça, Ronaldinho tergiversou:

– Eu admiro muito o Dunga. Até tenho a figurinha dele no meu álbum.

Naquele dia, pensei: resposta inteligente! Suavemente irônica e, ao mesmo tempo, respeitosa. Hoje tenho dúvidas se a ironia foi intencional e se houve inteligência na frase. Enfim. No domingo, em campo, Ronaldinho deu uma resposta mais corrosiva. Foi o melhor da partida, aplicou um chapéu e um elástico em Dunga, entrou na área do Inter a drible e marcou o gol da vitória e do título. Na segunda-feira, Luxemburgo o chamou para a Copa América.

Ronaldinho era reserva. Aquela Seleção tinha Romário, Ronaldo, Rivaldo, Edmundo e outros que tais. Mas, no jogo de abertura, contra a Venezuela, ele entrou no final. O Brasil já goleava, estava 5 a 0. Então, Ronaldinho protagonizou um lance que já se tornou clássico do futebol mundial: dentro da área, dominou a bola no ar, chapeleou um zagueiro, evitou outro e, cercado de adversários, mandou para o gol. Golaço.

Um gol lindo, sim, mas o melhor foi o que o sucedeu: a comemoração. Ronaldinho saiu gritando, pulando, socando o ar, vibrando com uma alegria autêntica e juvenil que encantou o mundo. Exatamente: foi aquela comemoração, mais do que a plasticidade do gol, que apaixonou os amantes do futebol. Porque Ronaldinho, naquele momento, representava a essência do jogo.

Era um menino que jogava por prazer, jogava rindo e brincando, e se emocionava com um gol que fazia. Não houve ensaio ou a mínima premeditação naquela comemoração. Não havia deboche, desafio, ironia ou bazófia. Ele não estava se jactando, nem afrontando quem quer que fosse. Era um menino festejando o seu gol. Só. E não precisava mais. E era o próprio futebol.

O Ronaldinho dentuço, sorridente e quase ingênuo, falando sempre em alegria, aquele Ronaldinho, por algum tempo, fez o mundo sonhar. Porque o futebol mais autêntico é o que se joga com 12 anos de idade: jogado por prazer. Ronaldinho parecia jogar por prazer.

Mais: Ronaldinho gritava ao mundo que jogava no clube do seu coração, o clube em que trabalhou o seu pai, em que trabalhava sua irmã, em que jogou seu irmão. Há fotos de Ronaldinho com sete anos de idade com a camisa do Grêmio, brincando com a bola, como brincaria aos 19. Naquela Copa América, inclusive, Ronaldinho declarou:

– No Grêmio eu jogo até de graça.

Claro que todos sabiam que não era bem assim, claro que nem o gremista mais acerbado esperaria que um jogador, qualquer que fosse, jogaria de graça, mas a declaração de Ronaldinho denotava o prazer que ele sentia em jogar bola no time pelo qual torcia. Não é precisamente esse o encanto do futebol? A paixão? Dois anos depois, quando os clubes europeus assediavam o Grêmio para contratá-lo, Ronaldinho, ao marcar um gol, correu para a casamata e gritou para os dirigentes sentados no banco:

– Não me venda, presidente!

Podia haver mágica maior para a torcida? Mas, pouco tempo depois, Ronaldinho saiu da forma como saiu, meio arrevesada, meio clandestina e friamente planejada. Ronaldinho, então, começou a quebrar o feitiço que o envolvia: descobriu-se que ele era outro a agir por dinheiro. Mais tarde, Ronaldinho pareceu desinteressar-se também pelo jogo. Tudo indicava que não sentia mais prazer com o futebol.

No começo desse ano, Ronaldinho acertou sua volta ao Grêmio. Seria o retorno daquele menino que gostava de jogar bola, e que gostava, sobretudo, de jogar no time pelo qual torcia. Depois, como se sabe, Ronaldinho desacertou de inopino sua volta ao Grêmio e fechou com o Flamengo.

Hoje, no Flamengo, Ronaldinho jogará contra o clube do seu coração. Exatamente na semana em que, depois de tanto tempo, ele finalmente voltou a jogar como um menino. Como se estivesse se divertindo. Estou curioso para vê-lo em campo. Será que sentirá algo quando vir a camisa do adversário? Será que ainda é capaz disso? Será que ainda existe um pouco daquele menino no corpo adulto de Ronaldinho? Ou será que o Ronaldinho da grana e da fama venceu?

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