sábado, 23 de julho de 2011



23 de julho de 2011 | N° 16770
NILSON SOUZA


O anjo do sono

O pedaço da minha alma que habita o joelho esquerdo ficou especialmente alegre com esta notícia da reabertura do Hospital Independência, na zona leste da Capital.

Só estive hospitalizado uma vez na vida – e foi naquele prédio abandonado e sucateado, que em breve voltará a receber pacientes e profissionais da saúde. Nem mesmo quando bebê fui hóspede de instituição hospitalar: nasci pelas mãos de uma parteira de bairro, na casa de madeira onde meus pais moravam, na zona norte de Porto Alegre.

Era uma época de muitos riscos, ainda assim cresci gordo e saudável. Mas ninguém é bruxo para escapar. Um dia, já adulto, dei o passo maior do que a perna – como se dizia antigamente – e rompi o ligamento cruzado anterior durante um jogo de futebol.

Com um joelho de elefante, de tão inchado, entrei no hospital a bordo de uma cadeira de rodas e passei pelo bisturi do doutor César Ávila. Levei um talho enorme, pois naqueles tempos pretéritos ainda não era tão usual a técnica da artroscopia, mas a regeneração foi perfeita. Voltei, inclusive, a jogar futebol.

Mal como antes, é verdade, mas só o fato de poder correr de novo já é suficiente para que eu fique eternamente grato pelo atendimento que recebi naquele hospital, tudo pelo mal-afamado SUS.

E ainda passei por uma experiência um tanto estranha na hora da cirurgia. A anestesia raquidiana me manteve acordado no início do procedimento, mas, como estava conversando demais, provavelmente devido ao estado nervoso, o anestesiologista completou o trabalho e me mandou para o mundo da inconsciência.

Antes de apagar, porém, pedi para segurar a mão de uma enfermeira de olhos verdes que estava ao meu lado. Ou foi depois de apagar? Nunca saberei. O fato é que aquela mão macia e aquele olhar de mar profundo me garantiram uma passagem suave pelo momento mais temido.

Acordei na porta do inferno, é verdade. A sala de recuperação, naquele período em que o corpo retorna às dores da vida e o tempo não passa, é um suplício. Mas aos poucos o cérebro desembaralha o mundo, os rostos familiares começam a fazer sentido e a gente retoma a rotina da existência. Claro que a moça não estava mais lá – se é que realmente esteve.

Ficou, entretanto, uma lembrança boa. Toda vez que passo pela frente do prédio do hospital que fechou em 2009, penso que o anjo do sono aguarda pacientemente que as luzes se acendam para que ela volte a tranquilizar almas inquietas com o toque mágico de sua mão macia e o encantamento do seu olhar de mar.

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