quinta-feira, 28 de julho de 2011


CONTARDO CALLIGARIS

Asilo político para Berlusconi

Se o Brasil quiser abrigar as "vítimas" do Judiciário italiano, melhor que comece com Berlusconi

A Itália existe há um século e meio. Em Veneza, monumentos temporários propõem a inscrição: "A nossa história juntos cumpre 150 anos". Gostei: uma nação não é uma realidade étnica nem geográfica, mas a sensação de uma história comum, ou seja, de que compartilhamos um patrimônio de lembranças e de esperanças.

Em campo Manin, alguém pichou o monumento: "Manin era veneziano, não italiano". É curioso, Daniele Manin só podia ser veneziano: morto em 1857, ele nem viu a Itália existir. Mas o fato é que, nos últimos 15 anos, vingam bairrismos separatistas que não se conciliam bem com as festividades.

Enfim, quis tomar a temperatura do sentimento nacional italiano no aniversário dos 150 anos. Fui assistir a "Nabucco", de Verdi, na arena de Verona ("Nabucco", aliás, está em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro nesta semana).

"Nabucco", de 1842, estabeleceu a fama e a fortuna de Verdi. A ópera é um drama da paternidade (no estilo "Rei Lear", um pai não entende uma filha e é traído pela outra) e um drama religioso (o deus dos judeus triunfa sobre o ídolo pagão dos assírios), mas, antes disso, é o drama do exílio de um povo arrancado à sua terra (os hebreus cativos na Babilônia). Esse drama é resumido pelo coro do terceiro ato, "Vá, Pensiero", cujo tema está presente desde a abertura e que foi recebido, na época, como o canto da nostalgia de uma pátria que os italianos ainda não tinham:

"Vai, pensamento, sobre tuas asas douradas, / Vai e te pousa sobre os clivos e os montes, / Onde mornas e doces exalam seu perfume as auras do sol nativo. / Saúda as beiras do Jordão / E as torres destruídas de Sião; / Oh, minha pátria, tão linda e tão perdida, / Oh, lembrança tão querida e tão fatal...".

Os 20 mil espectadores da arena de Verona escutaram num silêncio comovido, pediram e obtiveram o bis (tradicional no caso de "Vá, Pensiero"). Expressão de um nacionalismo canalha? Acho que não. Nos sentimentos que o coro evoca hoje (e talvez já na intenção de Verdi), há muito mais do que patriotismo: o coro é um hino para todos os que são arrancados à sua morada pela guerra, pela fome, pela violência dos outros e da natureza ou mesmo por seus próprios sonhos de "vida melhor".

Talvez os italianos o ouçam como um hino seu porque a modernidade os dispersou mundo afora e faz que, hoje, eles assistam à chegada à Itália de desterrados muito parecidos com eles mesmos poucas décadas atrás.

Como fica, nesse clima, o sentimento italiano em relação ao Brasil que concedeu asilo a Cesare Battisti? Nenhuma raiva nacionalista --apenas consternação com os argumentos brasileiros e a ignorância que eles manifestam da Itália das últimas décadas.

Para um italiano, a ideia de que alguém queira proteger Battisti da "Justiça de Berlusconi" é para além de cômica, pois juízes, promotores e policiais, com custos altíssimos (inclusive de vida), são 1) os que garantiram a sobrevivência da democracia italiana nos anos do terrorismo de esquerda e direita, quando Battisti operava, e 2) os que hoje defendem a legalidade democrática contra o "império" berlusconiano.

Esse estado de espírito é representado por uma coluna de Michele Serra, no "L'Espresso" da última quinta (21). Num processo que durou 20 anos, a Justiça condenou a Fininvest, de Berlusconi, a pagar 560 milhões de euros (R$ 1,4 bilhão) de indenização por ter corrompido um juiz que arbitrou a distribuição do controle acionário do grupo editorial Mondadori; agora, Serra imagina como Berlusconi poderia evitar pagar:

"Sendo impraticável o exílio para a Líbia (o risco de ser bombardeado pela Aeronáutica italiana é alto demais), Berlusconi poderia pedir asilo político ao Brasil, explicando a Lula que ele é vítima de uma infame perseguição política, assim como Cesare Battisti, e que ele tem muitos amigos entre os intelectuais franceses, entre eles Sylvie Vartan.

Para ser mais crível, Berlusconi está treinando para ver se ele consegue escrever romances policiais, mas as primeiras tentativas são decepcionantes: entende-se já, desde o primeiro parágrafo, que o culpado é sempre o juiz comunista".

Concordo, se realmente o Brasil quiser abrigar as "vítimas" do Judiciário italiano, melhor que comece (ou continue) com Berlusconi.

ccalligari@uol.com.br

Nenhum comentário: