sábado, 9 de julho de 2011



09 de julho de 2011 | N° 16754
CLÁUDIA LAITANO


A ausência que seremos

De vez em quando, me pego pensando em alguma coisa que esqueci de perguntar para os meus pais quando eles ainda estavam vivos. Um detalhe da juventude deles que me escapou, alguma memória de infância que eu nunca cheguei a conferir se batia com a lembrança que eles tinham, um ou outro episódio histórico que poderia ganhar novos contornos a partir da leitura doméstica do que estava acontecendo na esquina de casa ou do outro lado do mundo.

Tive uma convivência intensa e relativamente longa com meus pais, já era adulta quando eles morreram, mas o fato é que sempre me ocorre alguma conversa que ficou pela metade ou nem sequer aconteceu – e imagino que deva ser assim sempre, pouco importando o tempo que passa ou a maturidade de quem fica. Perder os pais é como extraviar uma pasta com documentos importantes: chega uma hora em que nossa própria história parece um livro com páginas faltando.

Se o fim da vida dos nossos pais leva embora trechos da nossa própria narrativa, também é verdade que a história deles ganha sobrevida e permanência através da nossa memória e das histórias que contamos sobre eles.

São tantos os livros que usam a figura do pai ou da mãe do autor como ponto de partida que formam quase um gênero literário. Há textos que nascem da necessidade de acertar as contas com o passado. É o caso da Carta ao Pai, de Kafka, que nem sequer era para ser publicado, tão íntimo e pessoal é seu conteúdo, mas tornou-se um dos mais tocantes registros da falta de comunicação entre pai e filho já escrito.

Há autores, porém, que retratam os pais com a delicadeza de um artista talhando sua obra-prima (criador e criatura invertendo aqui a ordem geral das coisas). Lembro do pai retratado por Carlos Heitor Cony em Quase Memória, tão humanamente imperfeito e amorosamente descrito, e da Sra. Ramsay, de Rumo ao Farol, inspirada na mãe de Virginia Woolf, tão viva e vibrante que sempre parece pronta a saltar das páginas do romance para nos convidar para um chá.

O pai do escritor Héctor Abad foi assassinado por paramilitares, na Colômbia, em 1987. Médico e defensor dos direitos humanos, o doutor Abad Gómez era um homem generoso e de convicções fortes. Contando a história do pai e das circunstâncias de sua morte, o escritor colombiano produziu um relato pessoal e político ao mesmo tempo.

Escrever foi uma forma de expiar a dor e a indignação (até hoje não se sabe quem foi o mandante do crime), mas também uma maneira de manter o pai vivo – para sempre – nas páginas de um livro. (E aqueles de nós que não escrevem romances passam histórias adiante de uma geração para outra – o que não deixa der ser uma forma de vida eterna.)

No dia em que foi morto, o pai do escritor levava no bolso um poema com as iniciais J.L.B., atribuído então a Jorge Luis Borges, intitulado Epitáfio. No soneto, está o verso que inspirou o título do livro de Héctor Abad (o mesmo desta crônica) – um dos mais bonitos, e tristes, que eu já ouvi: “Já somos a ausência que seremos”.

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