sábado, 25 de julho de 2020



25 DE JULHO DE 2020
HISTÓRIA

Uma trama perversa

Até o fim do século 18, o Rio Grande do Sul era habitado por povos indígenas. Mas foi chamado de "terra de ninguém" pelos espanhóis que invadiram os pampas e se tornaram proprietários legais, criando um dos maiores genocídios da história da humanidade com a dizimação dos índios. Depois, no século 19, quando Portugal teve a posse definitiva do Estado, os massacres dos índios ainda eram uma realidade. Homens, mulheres e crianças torturados, estuprados, carbonizados em Caiboaté. Morreram mais de 1,5 mil guaranis nas Missões Jesuíticas por lanças, espadas, degolas e canhões.

A participação do Estado, com os escravizados para as charqueadas, gerou rios de sangue. A produção do charque era um trabalho pesado e prolongado. Os trabalhadores viviam na senzala ou no barracão pulguento dos enfermos. Recompunham-se minimamente até que o capataz viesse acabar com sua "malandrice".

A Revolução Farroupilha é outro incidente de proporções perversas considerado um ato heroico na história do Rio Grande do Sul, porém, um acontecimento de horror e tirania com o massacre dos Lanceiros Negros. Na Batalha de Porongos, ocorrida quando as negociações de paz já estavam em curso, os lanceiros se distribuíam em oito companhias de 51 homens cada, totalizando 426 pessoas. Todos foram traídos e massacrados em uma emboscada fomentada pelos dois lados do conflito.

Em 1864, em Porto Alegre, eram produzidas as famosas linguiças humanas consumidas pela elite local. A polícia da cidade deparou com uma cena de crime horripilante: no porão da casa de José Ramos e Catarina Palse, as vítimas estavam degoladas, esquartejadas e descarnadas. Eram transformadas na linguiça vendida no açougue que ficava na Rua da Ponte (atual Riachuelo) e que era bem aceita no comércio pela alta burguesia.

Revolução Federalista, a "guerra das degolas": ocorrida de 1893 a agosto de 1895, foi a mais séria das contestações que a República brasileira, proclamada em 1889, enfrentou. A guerra chegou a Santa Catarina, em novembro de 1893, e ao Paraná, em janeiro de 1894. Além disso, uniu-se aos rebeldes da Revolta da Armada no Rio de Janeiro, colocando em risco a sobrevivência da jovem República brasileira. De um lado, estavam os republicanos históricos, adeptos do positivismo, membros do Partido Republicano Rio-grandense (PRR); no outro, os chamados liberais, que a partir de março de 1892 fundaram o Partido Federalista Brasileiro (PFB). A "guerra das degolas" durou 31 meses e deixou entre 10 mil e 12 mil mortos numa população de quase 1 milhão de habitantes, além de uma série de atrocidades nos campos de batalha. Foi a mais sangrenta guerra civil que assolou o Brasil republicano até hoje.

Na exportação das degolas para o conflito de Canudos, um novo marco na trama da maldade. Soldados dos pampas formaram uma especial tática na quarta expedição do governo republicano, após os canudenses imporem a este três humilhantes derrotas. Os gaúchos chamaram a atenção tanto por suas vestimentas exóticas quanto pela violência na tradição de barbárie das recentes guerras ocorridas no Sul.

Para mim, outro momento crucial da perversidade gaúcha: à morte de Lampião, de seu bando e de sua companheira Maria Bonita, derivaram-se suas cabeças, cortadas e expostas, como exemplo à população, durante o governo do presidente gaúcho Getúlio Vargas.

Depois veio a ditadura militar pós-1964, que no Rio Grande do Sul teve torturas, desaparecimentos e mortes. Criou-se uma rede, com 39 locais em Porto Alegre, onde pessoas eram presas e torturadas, desde o "primeiro soco" (interrogatório preliminar) até as confissões à base de choques elétricos e espancamentos. O maior centro perverso foi o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no Palácio da Polícia da capital gaúcha.

Talvez, de lá para cá, os espinhos dessa trama tenham se expandido na educação e no sistema de cárcere, duas áreas sincronizadas perversamente pelo sucateamento a que são submetidas. Atualmente, em episódios como a live do filme Inverno, promovida pela Associação dos Profissionais e Técnicos Cinematográficos (APTC-RS), são debatidos os sobrenomes da aristocracia "colonieuro", mas as riquezas materiais acumuladas pela sociedade "culta" gaúcha o foram à base de ganância, massacres e crimes engajados à maior pobreza de muitos. Também transmigrou a perversidade para as redes sociais, onde o mal se manifesta em forma de agressividade e absurdos diversos. A guerra do dedo no olho segue com alienação, abusos, machismo, feminicídio, racismo e hipocrisia. Talvez o amor precise ser reconfigurado. Precisamos do perdão, da cura, do renascimento. Estamos doentes de tanta perversidade.

Diretor e roteirista de curtas-metragens como ?Bacantes? (2019) e de HQs como ?Kardec?
CARLOS FERREIRA

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