sábado, 25 de julho de 2020



25 DE JULHO DE 2020
DAVID COIMBRA

A mancha

Já tinha saído de casa quando vi que havia uma mancha na minha camisa. Era uma mancha mais ou menos à altura do fígado, bem na frente, no lado direito. Uma mancha escura, e a minha camisa era clara. Uma camisa cor-de-rosa.

Homens antigos não usavam camisa cor-de-rosa. Aquela coisa da ministra Damares: "Meninos vestem azul, meninas vestem rosa". Por favor! Mulheres adoram homens vestidos de rosa, sabia?

Não sabia? Pois adoram.

Outra peça do vestuário masculino que é muito observada pelas mulheres: os sapatos. Algumas mulheres já me disseram que analisam a personalidade do homem pelo par de sapatos que ele calça. Elas olham para o sapato e já sabem que tipo de homem o cara é. Como elas fazem isso? Não sei. Estou apenas transmitindo a informação.

Compreenda, portanto, que muitas mulheres consideram homens de camisa rosa bastante másculos, e era assim que estava me sentindo, naquela manhã: másculo, selvagem, talvez provocador. Até que vi a maldita mancha.

Fiquei imediatamente irritado. Porque já estava chegando à Redação e usaria aquela camisa o dia inteiro, não havia possibilidade de trocar antes de a noite desabar atrás do Rio Guaíba. E mais: era provável que saísse direto do jornal para o bar. Ou seja: a mancha me acompanharia por horas, possivelmente madrugada adentro.

Aquele pensamento se transformou em outra mancha, uma nuvem negra que passou a pairar sobre mim e ensombreceu a manhã. Ao entrar no prédio da Zero Hora, percebi que a moça da portaria e o vigia olharam disfarçadamente para a mancha. Cumprimentei-os, desconfiado, e senti vontade de me debruçar no balcão e explicar:

"Olha só: tem uma mancha bem aqui na minha camisa, à altura do fígado. Não sei como essa mancha apareceu aí, quando vesti a camisa ela estava imaculada como uma freira, e agora isso. É muito desagradável. Vocês não têm, por acaso, um spray tira-manchas?"

Seria inteligente fazer essa antecipação. Mas depois pensei que ressaltar a mancha seria como ressaltar meus próprios defeitos. É ruim você ficar enfatizando os seus defeitos para os outros. Porque às vezes eles nem percebem e você é quem chama atenção para o erro. Então, não falei nada, segui em frente, comecei a subir as escadas. Mas tive a impressão de que eles riam à socapa, quando me afastei. Como as pessoas são cínicas.

Como seria visto, ao entrar na Redação? Essa pergunta me inquietava. Entenda: não há nenhum lugar do mundo mais crítico e ferino do que uma Redação de jornal. Além disso, as pessoas que trabalham lá são muito observadoras, faz parte da rotina delas observar. É certo que elas veriam a mancha.

"Olha ali o David, com uma mancha na camisa. Que relaxado! Isso é falta de higiene. Não deve ter nem sequer lavado a camisa, deve ser a camisa que ele já usou 10 vezes sem ter visto água. Ele usa e bota no roupeiro de novo".

Mas não é verdade! A camisa estava limpa. Deve ter sujado no café da manhã. Banana frita! Sim, eu havia comido banana frita na manteiga, temperada com canela, acompanhada de café preto. É algo que como, às vezes. E manteiga, é sabido, mancha irremediavelmente. Devia ser culpa da banana frita!

Sentei atrás do meu terminal. A Marta Gleich, por algum motivo, veio falar comigo. Não podia deixar que a diretora de Redação visse aquela mancha. O que ela ia pensar de mim? "Um cara que vem trabalhar com uma mancha na camisa é um cara que pouco se importa com o trabalho". Os chefes estão sempre nos avaliando.

Enquanto ela falava, peguei o bloco de anotações que estava na mesa e o coloquei bem na frente da mancha. Até pegava bem aquilo, era como se estivesse pronto para anotar as orientações dela. Ela falava e eu nem escutava. Só pensava: "Tomara que não veja a mancha".

Não viu. Se foi, na direção da sala dela. Ou será que viu, e agora estava rindo à sorrelfa? Por que não me disse que havia visto? Aí eu poderia explicar que foi a banana frita. Como as pessoas são cínicas!

Marchei para o banheiro. Ia remover a mancha agora mesmo, custasse o que custasse. Parei diante do espelho. Abri a torneira. Lambuzei a mão de sabonete. E ataquei a mancha com fúria. Esfreguei, esfreguei. Lavei bem lavado. Passei a toalha de papel para dar uma secada. Examinei a mancha. Parecia que se fora. David victor! Saí orgulhoso do banheiro. Estava pisando mais leve no corredor, estava quase sorrindo, quando ela apareceu de novo. A Marta Gleich. Olhou direto para o local onde antes reinava a mancha.

"O que aconteceu com a tua camisa, David?", perguntou, e nem esperou que respondesse, se foi sorrindo, decerto contar como sou negligente lá naquela reunião de diretores, eles todos balançando a cabeça em desaprovação.

Como as pessoas são cínicas!

DAVID COIMBRA

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