quarta-feira, 15 de julho de 2020


15 DE JULHO DE 2020
PEDRO GONZAGA

Noites


Era o tempo em que se podia ter da vida a parte gordurosa da vida, em ambientes às margens do insalubre, tempo de medos triviais, como azia e má digestão. Desde que os instrumentos estivessem a salvo, o resto era negociável. Acumulávamos as caixas pretas junto ao balcão da lanchonete, estojos para estranhas formas de armas: arredondadas, cônicas, cilíndricas.

(Jamais me habituo à maravilha de saber que as coisas estão sempre seguras no país da memória.)

O dono da birosca nos recebia com animação. As criaturas da noite, exceto os donos de bares, gostam de músicos, talvez desde os tempos das festas provençais, sem músicos tudo é um pouco mais triste e, por contraditório que pareça, menos silencioso. A música organiza o espaço com suas células rítmicas, seus tecidos harmônicos e seus fios melódicos, domestica o silêncio e a algazarra, emoldura o tempo por gloriosos minutos, como em Not Dark Yet, de Bob Dylan.

Animado e de uma cortesia ímpar, o dono nunca nos pediu que tocássemos, sabia que ali chegávamos depois dos shows, ainda que uma ou outra vez tenhamos sacado os instrumentos para alguma fanfarra. Não era o normal. Ao nos ver chegar, colocava numa rádio de flashbacks, talvez por usarmos trajes de outras eras. E depois preparava seu xis especial, um daqueles quitutes que o passar dos anos e a medicina nos vetam de todo, embora sigam sendo prensados no mundo destemido.

Certa noite, um carro travou quase junto à mesa onde estávamos. Uma mulher abriu a porta do motorista e saiu aos gritos. Começou a esmurrar a lataria do capô, chamando um ser ausente de canalha, verme, desgraçado. Que não pareça falta de simpatia, mas cenas assim eram comuns à noite, com protagonistas deveras embriagados. A prudência indica manter a normalidade das ações. Logo ela se abancou numa cadeira e ordenou a bebida mais forte do trailer, conhaque ou um campari, e continuou a desancar o pilantra, digno de uma peça de Nelson Rodrigues. Era uma época em que se tomava menos partido, não havia redes sociais. A verdade estava lá fora, dizia uma série. Independentemente disso, toda criatura humana às vezes precisa de uma canção certa. Em Porto Alegre, na Terra toda, antes que seja tarde.

Em silêncio nos levantamos, abrimos os estojos e, apesar da pança cheia, atacamos um tema de dor de cotovelo infalível.

Naquela noite nem a vizinhança reclamou do barulho.

PEDRO GONZAGA

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