sábado, 18 de julho de 2020



18 DE JULHO DE 2020

FRANCISCO MARSHALL



GENOCÍDIO BRASILEIRO


Sempre que pensamos algo importante, aparecem palavras gregas ou latinas. Por vezes, são palavras fecundas, como isonomia e democracia, ou como liberdade, que conhecemos da flâmula mineira: libertas quae sera tamen, ou liberdade, ainda que tardia. E como tarda! No extremo oposto da inspiração bela, todavia, aparecem os horrores da História, e, com eles, esta palavra tenebrosa que ora vemos à nossa frente: genocídio. O assassinato de um povo. Examinemos, antes dos fatos, as palavras, gregas e latinas, seus significados possíveis - pois o que seria de nós sem a potência das palavras?

Genocídio é um neologismo (junção de palavras) consagrado, porém espúrio. Um neologismo puro une só palavras gregas, como autonomia, ou só latinas, como aeronave. O sufixo -cidio indica, em latim, assassinato, mas o prefixo genos é grego e refere família ou linhagem. Uma das palavras gregas para povo é ethné, de onde temos a etnologia, estudo de tribos, povos ou nações. A palavra grega para assassinato é phonía, mas não a utilizamos em português. 

O termo grego para o que ora ocorre seria etnofonía, assassinato de um povo. Podemos usar a palavra consagrada, genocídio, com duas ressalvas: primeiramente, que genos refere famílias e linhagens - neste caso, especialmente negros, índios, pobres, mulheres e homossexuais, ou a mistura desses componentes, com risco letal ampliado. Segunda ressalva: essa palavra não deveria sequer existir, que se dirá ser utilizada para descrever a situação atual do Brasil.

O Genocídio do Negro Brasileiro é o título do livro de Abdias do Nascimento (1914-2011), de 1978, reeditado em 2016, ano em que Tarsila Flores publicou o capítulo de livro Genocídio da Juventude Negra no Brasil. É farta a documentação estatística e analítica do quadro mórbido do racismo brasileiro, em que a sociedade agride mortalmente o povo negro. Isso reverbera no quadro atual da pandemia, em que negros morrem em quantidade desproporcional. Não bastassem a letalidade do racismo e a do coronavírus, acrescenta-se a chaga que ora cresce com estímulo oficial, a violência policial, vitimando ainda mais negros e negras. Passou da hora de todos gritarmos BASTA!

Chega-se então à crise sanitária. Por que a mortandade brasileira na pandemia deve ser designada genocídio? Há dois fatores objetivos: a soma das numerosas e persistentes negligências do governo federal no combate à pandemia, resultado de opções inaceitáveis, desdenhando ciência, prudência e eficiência, e a morbidez do presidente que ganhou votos ensinando crianças a fazer arminha e prometendo matar a oposição, um tipo sem compaixão, líder de um necrogoverno, genocida. Um dia, um tribunal decidirá se é genocídio culposo (sem intenção) ou doloso (com intenção) para dosar penas, mas estas terão de alcançar todos os responsáveis, fardados ou não, pela catástrofe sem precedentes em que sucumbem dezenas de milhares de compatriotas.

Não viveremos com liberdade em uma democracia enquanto houver racismo, e ninguém está a salvo enquanto perdurar o genocídio brasileiro.

FRANCISCO MARSHALL

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