quinta-feira, 30 de julho de 2020


30 DE JULHO DE 2020
DAVID COIMBRA

O lance mais horrível do ano


Há, no cinema, uma categoria de filmes tão ruins, mas tão ruins, que se tornam clássicos. O cinema se presta para isso, porque é uma experiência breve, de duas horas de duração. Um livro, por exemplo, não se torna "cult" por ser horrível, porque o leitor não vai adiante, larga já nas primeiras páginas. Ele não vai passar dias se aborrecendo.

O maior dos clássicos horrendos do cinema é Barbarella. O mestre Roger Vadim, homem que se consagrou por suas mulheres, é o diretor. Se você acha que exagero ao ressaltar as mulheres de Vadim, informo que duas delas foram Brigitte Bardot e Catherine Deneuve. A outra foi Jane Fonda, que era a protagonista de Barbarella.

Vadim explora a beleza perturbadora de Jane no filme. O filme é a beleza explosiva de Jane em sua juventude, e nada mais. É uma trama risível, típica dos anos 1960, mas que acaba sendo uma boa diversão. Tornou-se tão singular, Barbarella, que o vilão da história, Durand Durand, virou nome de banda de rock na Inglaterra. E a mocinha virou nome de padaria em Porto Alegre.

Foi em Barbarella que pensei, no fim do jogo do Grêmio contra o Novo Hamburgo, nesta quarta-feira. O jogo foi ruim, disputado sem torcida, num campo precário, numa tarde de meio de semana. Um jogo para esquecer, não fosse um lance imortal.

O autor foi o centroavante Luciano. Ele já vinha jogando mal, mas, no fim do segundo tempo, se consagrou: Pepê ganhou dos zagueiros em velocidade, zuniu pelo lado esquerdo da área em direção à linha de fundo, mas, antes de chegar lá, girou o corpo e passou para trás. A bola veio mansa como um gato castrado, oferecendo-se para Luciano. Não havia mais goleiro, não havia mais zagueiro, era o atacante e o gol, o gol e o atacante. Luciano podia ter dominado a bola antes de chutar, podia ter avançado com ela, podia ter chutado forte, mas optou por bater colocado, de primeira. A bola saiu molenga, à meia altura, quicou no gramado crespo e saiu a uns três metros da trave.

Foi feio. O mais horripilante lance do futebol deste ano horripilante. E, por isso, um lance eterno. Será para sempre lembrado que esse foi, de fato, um lance digno dos tempos da peste.

Viva a vacina russa

Não me surpreenderei se os russos desenvolverem antes de toda a humanidade uma vacina contra a covid-19. Trata-se de um povo disciplinado, que já sofreu muito e que já fez muitas coisas portentosas.

A dimensão dessa grandiosidade me atingiu em cheio assim que entrei em uma estação de metrô de Moscou, na Copa de 2018. Aquelas estações subterrâneas foram construídas pelo regime comunista para serem os "palácios do povo", e são mesmo. A suntuosidade das mansões dos nababos do czarismo é reproduzida justamente no lugar onde mais circulam trabalhadores.

É uma obra de originalidade e cheia de significados. Você desembarca de um vagão, pisa na plataforma e fica embasbacado. É como se estivesse num salão do Hermitage, de São Petersburgo, só que dezenas de metros abaixo da superfície, em meio ao vulgo.

A literatura russa, de certa forma, é como uma dessas estações: ao mesmo tempo grandiosa e profunda, nobre e popular. O caráter da literatura demonstra o caráter de um povo. Você encontra, na literatura russa, contistas lapidares, como Gogol, mas sua força está na densidade de seus romancistas e, nesta categoria, talvez Dostoievski seja o maior do planeta Terra de todos os tempos, desde o Big Bang até a rodada vespertina do Gauchão, ontem. Dostoievski, Gogol, Tolstói, Tchekov, todos eles são escritores de substância encorpada, são escritores de inverno.

Já os grandes brasileiros são os escritores solares. O maior romancista do Brasil, Machado de Assis, brinca com o leitor e com os seus personagens. É um pândego, o Bruxo do Cosme Velho. Agora, o estilo brasileiro por excelência é a crônica. Não fomos nós que a inventamos, foi o francês Montaigne, mas, como aconteceu com o futebol, criado pelos britânicos, nós a sublimamos. O Brasil é o país do futebol, do Carnaval e da crônica. E o nosso Pelé é Rubem Braga. Digo sempre, e sempre direi, que Rubem Braga é o maior escritor do Brasil, além de ser o mais subestimado, porque só escrevia crônicas.

Se você beber das crônicas do Velho Braga, compreenderá o Brasil, um país que consegue ser jovial e triste, delicado e mundano, um país em que tudo é breve como a leitura de jornal.

Nós amamos a brevidade e a leveza, e por isso mesmo temos dificuldades em alcançar façanhas coletivas, como mandar Sputnik para o espaço, vencer a Batalha de Stalingrado, cavar estações de metrô que se assemelham a museus ou desenvolver vacinas redentoras. Os russos, unidos, fazem essas coisas. Há quem duvide que os russos estejam mesmo com a vacina tão adiantada, pronta para ser distribuída em dias ou semanas. Eu acredito neles. Em agosto, teremos a vacina. Salve os russos, nossos salvadores!

DAVID COIMBRA

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