terça-feira, 14 de julho de 2020


14 DE JULHO DE 2020
DAVID COIMBRA

O que une o Baitaca a Caetano Veloso

De todos os artistas que fizeram lives à mancheia e vídeos tantos e milheiros de postagens pelos desvãos da rede, nesta peste interminável, nada tem sido melhor do que dois cantores que habitam planetas culturais diferentes, embora vivam no mesmo país: o baiano Caetano Veloso e o gaúcho Baitaca.

O Baitaca já fazia sucesso antes de o corona nos sitiar, mas, com a quarentena, seus vídeos alcançaram um público que não o conhecia. Seu clássico, Do Fundo da Grota, é uma preciosidade. Tudo ali é perfeito, desde a imagem do gaudério-raiz, que é o Baitaca cantando pilchado, debaixo de um chapéu de aba larga e no meio do campo, passando pelo ritmo contagiante da gaita que abre e marca a música, até a letra repleta de imagens do campo.

O Baitaca conta que se criou comendo feijão mexido, com pouca graxa e sem sal. Pois o meu feijão mexido tem graxa e sal. E pimenta à grande. E, às vezes, ainda meto-lhe uma mostarda. Aí sou mais gaudério que o Baitaca. A la fresca!

De repente, ele cita um mão-pelada. Desde que meu avô morreu não ouvia falar em mão-pelada, o que me faz pensar em como nós, porto-alegrenses, nos distanciamos da realidade campeira, e o Baitaca é campeiro mesmo, não é aquele músico que se pilcha só para cantar, mas que nem tomar mate toma, como o Pedro Ernesto Denardin.

Já o Caetano Veloso, que tanto já fez e mostrou para o Brasil, alcançou uma proeza: está fazendo e mostrando algo completamente novo. É uma surpresa, porque o Caetano é um dos maiores artistas do Brasil de todos os tempos, autor de letras sofisticadas e músicas que viraram hinos da MPB, é um poeta que domina a língua de Fernando Pessoa como se fosse Fernando Pessoa, e que tem opinião rascante sobre tudo. Mas, nos vídeos gravados por sua mulher, Paula Lavigne, aparece outro Caetano, que é muito bom de se ver.

O Caetano que a Paula desvenda é um tipo caseiro, que surge às vezes de pijama, sentado no canto de um sofá amarelo, lendo jornal, dedilhando o violão, comendo paçoquinha, bebendo kombucha. Paula provoca-o, debocha dele, insiste para que cante ou se manifeste a respeito de um assunto qualquer, e Caetano responde mansamente, ele não se incomoda com a abordagem meio invasiva da mulher, parece até se divertir, embora leve cada pergunta que ela faz a sério.

Acostumei-me com uma persona do Caetano bem diferente dessa. Em público, ele é firme, tem opiniões agudas, às vezes até é agressivo. Há, no YouTube, uma série de vídeos do Caetano furioso. Um deles, inclusive, se tornou meme, aquele em que ele chama um jornalista de burro. "Isso aí tudo que você disse é tudo burrice. Eu não consigo gravar muito bem o que você falou, porque você fala de maneira burra".

Mas esse Caetano de hoje, de pijama e kombucha, é uma pessoa doce, afável, engraçada e desarmada. Gostava do Caetano antes, gosto mais agora, por causa disso. Mas o que gostaria, de fato, era de vê-lo interagir com o Baitaca. Caetano é conhecido como intérprete de cantores improváveis, como Peninha e Odair José, por que não se aventurar pelo universo gaudério? Queria ver o Caetano se achegando ao Baitaca. Queria ver o Caetano do fundo da grota.

DAVID COIMBRA

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