11 DE JULHO DE 2020
JULIA DANTAS
NÓS E OS OUTROS
As mulheres tiveram seu status na sociedade definido em oposição ao homem. Se o homem era considerado racional, objetivo e equilibrado, as mulheres eram emocionais, selvagens e instáveis. As mulheres serviam de Outro para a delimitação de quem era o centro. O mesmo ocorre entre brancos e não brancos. As normas sociais, a cultura e as leis são criadas a partir de um centro branco. É por isso que há batidas policiais para procurar drogas em bailes funk, mas não em boates caras: já temos preestabelecidos quais são os espaços de crime.
Muitas vezes, quem está no centro nem se dá conta disso. É por isso que é recorrente que pessoas brancas - mesmo bem intencionadas - usem expressões como "precisamos cuidar dos nossos índios", mas nos soaria bastante estranho se um índio dissesse "temos que ficar de olho nos nossos brancos".
Uma divisão similar ocorre hoje na demarcação de quem é brasileiro. Um aspecto perverso de certo tipo de patriotismo é a defesa da pátria, mas com ódio aos compatriotas. O Brasil está cheio de patriotas que desprezam uma parcela enorme de brasileiros. Sabemos quem são: dizem que se trocássemos a população por japoneses esse país ia para a frente, pois o problema do Brasil é o brasileiro; afirmam que brasileiro pula em esgoto e não acontece nada; que não pode receber auxílio emergencial ou nunca mais vai querer trabalhar; que não produz conhecimento nem boa arte. É assim que esses patriotas enxergam os Outros: seres animalescos que sobrevivem à degradação, incapazes, descartáveis. São preconceitos que nos acompanham desde o Brasil colônia. Defendia-se que os negros eram menos humanos, logo, podiam ser escravizados. Dizia-se que os índios eram preguiçosos e não serviam para o trabalho.
Ainda não superamos esses preconceitos. Os negros são criminalizados, os índios, considerados um entrave ao progresso. Já os brancos são o centro e, por isso, perfeitamente capazes de separar-se dos horrores cometidos por sua raça (usando raça como conceito cultural, uma vez que geneticamente essa separação não existe). Não generalizamos a experiência das pessoas brancas; não dizemos que são todos corruptos, lavadores de dinheiro, bandidos de colarinho branco, por mais que a maioria das pessoas que cometam esses tipos de crimes sejam brancas. Enxergamos raça apenas no Outro.
Por isso desconfio dos patriotas raivosos. Eles se colocam no centro e aceitam só um tipo de brasileiro, e sei que não cumpro os requisitos, pois sou mulher, estou no campo político da esquerda, estou em uma universidade e a defendo. Mas, gostemos ou não, ainda respondemos às fronteiras. Gostem ou não, sou brasileira, eu e mulheres, negros, indígenas, pobres, gays, socialistas, conservadores, religiosos e brancos que nascemos aqui.
Espero que algum dia sejamos incluídos quando os detentores do poder falarem sobre o Brasil. Até lá, mesmo que um pouco expatriados por esses conterrâneos seletivos, sejamos brasileiros incômodos. E fiquemos de olho nos nossos brancos.
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