sábado, 18 de julho de 2020



18 DE JULHO DE 2020
LEANDRO KARNAL

AMIZADE E CASAMENTO

No filme My Fair Lady, o pernóstico professor interpretado por Rex Harrison canta um dueto com seu amigo Pickering: A Hymn to Him (letra de Alan Jay Lerner e música de Frederick Loewe). A obra é uma reclamação masculina sobre como os homens seriam "fáceis" e as mulheres, "complicadas".

A letra fala de mulheres que reclamam de coisas banais como a falta de flores, do companheiro tomar uns drinques, de sair com os amigos. Esposas repetiriam comportamentos de suas mães (ah, as sogras!) e tornariam chata e cheia de cobranças a vida de seus "pobres" maridos. A personagem insiste: "Por que as mulheres não podem ser como nós?". Em outras palavras, levar a vida mais "na flauta" (meu Deus, alguém ainda sabe o que significa a expressão?), serem mais agradáveis conosco e pararem de implicar a cada falta, deslize ou comportamento errático. Como complemento implícito, a amizade entre homens, sem cobranças, calcada no companheirismo livre de ressalvas, seria o modelo perfeito da canção. Homens são companheiros, vivem juntos a boa vida, não se importam com pecadilhos dos amigos, pois partilham deles.

A amizade, historicamente, foi pensada como um sentimento dos mais nobres e... própria do gênero masculino. Cícero escreveu um tratado sobre isso. Para o romano, conhecedor de larga tradição de se pensar o tema desde a Grécia antiga, mais do que mera afeição, a amizade seria uma espécie de pacto objetivo baseado na fidelidade e na confiança, um acordo inquebrantável se verídico. Logo, a amizade só poderia existir entre iguais, entre homens bons, pois implicaria palavra. E palavra dada não se quebra se foi empenhada por pessoa honrada. Também na Antiguidade, Epicuro (a quem Cícero criticava) escreveu que a amizade não pode ser vinculada à utilidade, pois seria algo isento, prazeroso. Devia ser fluido o compromisso entre amigos, agradável, baseado em boas conversas, em trocas equilibradas, não em troca de favores e cobranças.

Séculos mais tarde e esse eco da velha amizade voltava a ser motivo de textos muito bem escritos, como o ensaio sobre a amizade de Michel de Montaigne. Tendo seu falecido amigo Étienne de la Boétie como inspiração, Montaigne declama as virtudes de uma amizade pautada na filia, no amor entre iguais, almas que se reconhecem num relacionamento verdadeiro, isento, elevado. Chora a morte do companheiro de uma vida. Sor Juana Inés de la Cruz louvou a amizade elevada que tinha com a vice-rainha do México. Maquiavel alertou sobre a falsa amizade, aquela feita por interesse. Os moralistas modernos seguiram o florentino.

De lá para cá, outro fenômeno correu em paralelo. O mundo burguês, industrial, criou o homem de escritório, aquele cuja moral estava ligada ao mundo de fora da casa. Junto disso, passamos a casar por amor, por escolha, não mais por contratos arranjados. Em matrimônios tradicionais de outrora, a convivência entre cônjuges seria um dever, a prole era linhagem e o controle sobre o corpo feminino levou à tentativa de "domesticação" da esposa. 

O mundo antigo já fazia isso, mas sobre outras chaves lógicas. Nos séculos 19 e 20, a mulher encarnou a "rainha do lar", já idealizada por Rousseau no seu Emílio. Virou imperatriz da moral e dos bons costumes, responsável por manter filhos, empregados e maridos na linha. Afinal, no lar, o "maridão" precisava ser lembrado que o mundo imoral e competitivo dos negócios tinha que ficar do lado de fora. A casa era um templo. Com o casamento por amor, nasceu a mulher que cobrava o marido por amor, por dever de ensinar seus filhos.

Aos homens, lembrando-lhes de se comportarem no ambiente familiar, de terem limites diante de convidados e das crianças, nada mais seria cobrado. Lavar pratos ou simplesmente recolher a louça da mesa? Imaginem! Lavar ou colocar roupa no varal? Jamais! Educação dos filhos, que remédios tomam e que lições trazem da escola para o lar? Não cabem na agenda do homem. Responsabilidades vistas como menores, comezinhas, domésticas, banais, além da moral, boas maneiras e educação: mundo no qual reinaria a mulher, perfeita esposa. 

Se o marido tiver sucesso no seu mundo dos negócios, da competição, das ideias, dos grandes ideais, a mulher contrataria outra (ou muitas outras) mulher para fazer as tarefas domésticas no seu lugar. O marido, estressado, cansado de tantas cobranças e competição em seu mundo, ou exaltando suas vitórias, encontraria no convívio de iguais um mundo no qual falar abertamente o que se pensa, ser mal-educado, despreocupado, pensar com pesar ou leveza os problemas do universo. Por que as mulheres não podem ser como nós?

Soma-se a isso a noção romântica de que casamento por escolha é a culminância do amor e a canção se explica. As histórias de amor do século 20 terminam onde o casamento começa, param com um prosaico e potencialmente desastroso "viveram felizes para sempre". Mas há toalha molhada na cama, tubo de pasta apertado errado, homem se esquivando de agir em casa, mulher cobrando. 

A amizade parece ser tão superior ao casamento porque revive todo o trajeto da camaradagem viril, de Cícero ao My Fair Lady. Crescemos quando percebemos que confiança, problemas, leveza, amargor, lealdade e cobranças permeiam todo afeto. Abrace a vida, com amor e amizade sinceros, e com os problemas todos que derivam disso. Se alguma relação foi apenas leve e positiva, há o risco de não ser uma verdadeira amizade ou um genuíno amor. Importante sempre: ter esperança nos homens e nas mulheres.

LEANDRO KARNAL

Nenhum comentário: